Page 28 - Revista FRONTAL - Edição 50
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EM CONTACTO


        A RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE








        AUTORES
            BEATRIZ FIGUEIREDO

            DAVID GIL


         A relação médico-doente é o pilar inicial de toda a prática médica ocidental. É a única componente de toda a arte que se manteve ao longo
           dos milénios da história médica. Mesmo assim, não se encontra dentro de uma bolha isolada, e é condicionada pelos mesmos fatores
                                 sociais que a restante sociedade. O que será desta tradição hoje em dia?




           A relação médico-doente é definida pelo   contar os mortos, com pouca medicina a ser   comparada com qualquer outro período de 4
        Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel   praticada efetivamente, sendo esta reservada   anos na história. Com este salto viu-se tam-
        Guimarães, como um “ato médico por exce-  às classes superiores.        bém mais alguns passos no descer da poltro-
        lência, da qual resulta uma história, um exa-  Uma aproximação daquilo que nós pode-  na à cabeceira do doente.
        me clínico e um conjunto de informações,   mos encontrar a uma relação médico-doente   Semelhante aos tempos já descritos, o
        medidas e decisões, que determinam o pre-  mais coerente com os nossos patamares a   boom da tecnologia que se verificou durante
        sente e futuro do doente”. Mas este ato nem   partir  da  2ª  metade  do  século  XIX. Durante   estes últimos 50 anos veio revolucionar muitas
        sempre se desenrolou da mesma forma ao   a  Guerra  da  Crimeia,  travada  entre  1853  e   áreas, inclusive a Saúde e a própria relação
        longo da História.                  1856, a grande maioria das baixas decorreram   médico-doente. Para o bem e para o mal.
           Desde os curandeiros Egípcios, conside-  das  conduções  péssimas de  saneamento, e   A disponibilidade de informação através
        rados mágicos, que evoluíram das relações   ondas de cólera  e outras doenças varreram   da tecnologia e a capacidade de guardar to-
        sacerdote-suplicante, aos “semideuses” da   as fileiras de soldados. Foi neste clima que o   dos os dados dos processos clínicos de todos
        Grécia Antiga, aos médicos paternalistas da   conceito moderno de enfermagem e medicina   os doentes, trouxeram enormes vantagens no
        época de Hipócrates... Inicialmente com gran-  surgiram, primeiramente em contexto militar, e   dia a dia da prática clínica. A tecnologia neste
        de disparidade de status entre médico e doen-  seguidamente no civil.   âmbito trouxe mais vantagens ainda, permitin-
        te,  os  médicos  adotavam  medidas  terapêuti-  E num padrão já visto anteriormente,   do muito menos perdas de informação, maior
        cas sem consultar as preferências individuais   durante os 4 anos onde se travou a Primei-  organização de dados, acesso à Internet para
        dos doentes, assumindo o que julgavam ser   ra Guerra mundial a medicina assistiu à sua   esclarecimentos rápidos de dúvidas, tornan-
        o melhor para estes, sem que houvesse qual-  maior fase de evolução tecnológica, quando   do-se, porém, um obstáculo na comunicação
        quer tipo de participação ativa nas decisões.                           com os doentes.
        “Se o enfermo não admira o médico de algum                                Com períodos de consulta cada vez mais
        modo como a um Deus, não aceitará as suas                               curtos, necessidade de registar em computa-
                                                   Não podemos permitir que a
        prescrições” - Galeno. Esta realidade viu o iní-  “                     dor toda a informação e muitas vezes sistemas
        cio da sua mudança graças a Hipócrates, que                             lentos que não colaboram, os médicos têm
        concebeu alguns dos princípios fundamentais   relação médico/doente se torne um   menos tempo para ouvir e vêem-se cada vez
        da profissão médica, presentes no seu Jura-                             mais dedicados ao monitor e menos disponí-
        mento, considerando o médico como guardião   desencontro mediado por tecnologias,   veis para olhar para os doentes. No entanto,
        da saúde e da vida, e enunciando “Respeitarei                           hoje e desde sempre, os elementos cruciais
        a autonomia e a dignidade do meu doente”.  sem qualquer humanismo (...). Uma   na relação médico-doente são o respeito, a
           Assim, durante séculos, a medicina oci-                              confiança, o humanismo, a compaixão e a co-
        dental esteve relativamente estagnada, com   medicina personalizada tem que ser   municação adequada. E olhar para um com-
        as imposições dogmáticas de Roma, e com                                 putador e escrever enquanto o doente fala,
        esta a relação médico-doente continuou se-  centrada na pessoa e ter espaço para a   não ajuda. É necessário estabelecer empatia
        gundo as palavras de Galeno. Nos tempos                                 com o doente que temos à frente e, para tal,
        em que a Europa foi assolada pela Peste Bu-  empatia e a compaixão.     é imprescindível conversar com ele, ouvi-lo,
                                                                   ”
        bónica, os famosos médicos com máscaras                                 questioná-lo, olhá-lo  nos olhos, procurar  en-
        em bicos de ave vagueavam pelas cidades a                               tendê-lo. Há que mostrar que valorizamos as


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