Page 234 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

              E eu dormia sem sono,  desviado já do que  via a sentir,
          crepúsculo de mim mesmo,  som de  água entre  árvores,  cal-
          ma dos grandes rios, frescura das tardes tristes, lento arfar do
          peito branco do sono de infância da contemplação.





              Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na
          cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade porém com isso o
          meu gosto seria dois.





              Nada  pesa  tanto  como  o  afeto  alheio  —  nem  o  ódio
          alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo
          uma  emoção  desagradável,  tende,  por  instinto  de  quem  a
          tem, a ser menos freqüente.  Mas, tanto o ódio como o amor
          nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam
          (sós).

              O meu   ideal  seria  viver tudo  em  romance,  repousando
          na vida — ler as minhas emoções, viver o meu  desprezo de-
          las.  Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventu-
          ras de um protagonista de romance são emoção  própria bas-
          tante,  e  mais,  pois  que  são  dele  e  nossas.  Não  há  grande
          aventura  como ter  amado  Lady  Macbeth,  com  amor  verda-
          deiro e direto; que tem que fazer que[m]  assim  amou senão,
          por descanso, não amar nesta vida ninguém?

              Não  sei  que sentido tem  esta  viagem  que  fui  forçado  a
          fazer, entre  uma  noite e outra noite,  na  companhia do uni-
          verso inteiro.  Sei que posso ler para me distrair. Considero a
          leitura  como  o  modo  mais  simples  de  entreter  esta,  como
          outra, viagem; e,  de vez em  quando,  ergo os olhos do livro
          onde estou  sentindo verdadeiramente, e vejo,  como  estran-
          geiro,  a  paisagem  que  foge  —  campos,  cidades,  homens  e
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