Page 25 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
cie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação con-
tra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto an-
dar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho,
sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro
barato [...] sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quar-
to andar, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem!
afazer prosa [...]
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores.
E isto escrito, então, parece-me a eternidade.
O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavel-
mente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem,
salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas,
num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me
com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupa-
ção desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas
por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?
O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a
saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa
casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um
sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei,
para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas
em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num
asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com
a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que men-
digos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não
tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do
avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão
Vasques, o escritório da Rua dos Etouradores, e a monotonia
da vida quotidiana será para mim como a recordação dos