Page 328 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recos-
tado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho
frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de
dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movi-
mento métrico e verbal de grandes poemas em todas as pala-
vras, e um grande [...] como um escravo que não vejo, se-
gue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde
jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde que-
reria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do
nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que
uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afas-
tados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto,
um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher,
que a nossa intuição diz que olharia para trás, e nunca chega
a existir.
Projetos, tenho-os tido todos. A Ilíada que compus teve
uma lógica de estímulo, uma concatenação orgânica de epo-
dos que Homero não podia conseguir. A perfeição estudada
dos meus versos por completar em palavras deixa pobre a
precisão de Virgílio e frouxa a força de Milton. As sátiras
alegóricas que fiz excederam todas a Swift na precisão simbó-
lica dos particulares exatamente ligados. Quantos Verlaines
fui!
E sempre que me levanto da cadeira onde, na verdade,
estas coisas não foram absolutamente sonhadas, tive [sic]
a dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram
todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato
em eu pensar e elas serem.
Fui gênio mais que nos sonhos e menos que na vida. A
minha tragédia é esta. Fui o corredor que caiu quase na meta,
sendo, até aí, o primeiro.
A experiência direta é o subterfúgio, ou o esconderijo,
daqueles que são desprovidos de imaginação.