Page 3 - Portofolio Aurélia Cerulei - MABRI
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A História é diretamente ligada à Geografia e isso não é diferente para minha história, para a história de qualquer um ou para
qualquer história.
A linha esticada de um ponto a outro é tudo que se materializa: a memória, os pensamentos, os olhares, as ideias, as soluções,
as relações, as companhias, as ausências. As linhas com certeza reforçam ou criam as ligações mas também abrem e protegem os
caminhos.
As que amarram também podem libertar e apesar de frágeis, elas podem guiar e dar segurança. São essas ambiguidades que me
deixam acreditar que tudo ainda é possível. E elas também me permitem mudar a função das linhas dependendo da necessidade.
Os cacos de louça, a maioria vindo da casa da minha mãe, são referências arqueológicas de um passado real ou não. Eles podem
reconstruir o que já foi perdido ou danificado, como as ideias ou as memórias.
Sem palavras, faladas ou escritas, não há História nem histórias, mas as palavras, feliz ou infelizmente, podem mudar seu sentido.
As uso muito no meu trabalho para confirmar ou às vezes mudar a narrativa. Foi quase só com palavras que defendi meu projeto
para o diploma da École des Beaux Arts de Toulon (Escola das Belas Artes), contando a história real de um terreno tão fértil, que
acabou gerando uma zona comercial onde antes brotavam alimentos. Falava enfim do desaparecimento dos pequenos camponeses
na França e das repercussões dessa transformação sobre a paisagem local.
Meu primeiro contato com linhas foi quando eu tinha 4 anos, com uma vizinha costureira com quem adorava ficar e olhar as linhas
coloridas que ela usava para alinhavar os tecidos escuros. Uma vez a roupa costurada, ela retirava essas linhas e as jogava no seu
ombro para reutilizá-las.
Depois foi no atelier de restauro de tapeçarias antigas onde minha mãe começou a trabalhar quando eu tinha 5 anos. Ali passei boa
parte da minha infância. Além das linhas serem o principal material usado e estarem em todo o ambiente, o atelier estava dirigido
por uma senhora que bordava mais de 12 horas por dia. E essa convivência me ensinou e me inspirou muito.
Aos 16 anos me deram a oportunidade de aprender trabalhando. E assim paguei meus estudos na École des Beaux Arts, restaurando
tapetes e tapeçarias durante as férias. Além de ter aprendido muito tecnicamente, aprendi também que precisava criar, pois lá não
havia lugar para a criação.
O mundo da moda, ao qual cheguei quase por acaso enquanto estagiária e novamente depois de formada, me permitiu encontrar
também o mundo da criação têxtil. Por ele me apaixonei através de uma empresa tradicional, de quase 150 anos na época, e hoje
desaparecida como muitas indústrias têxteis francesas. No quadro Délocalisation teci o desaparecimento delas, apontando a direção
da China.
Definitivamente, as linhas são o fio condutor da minha historia.
Acredito que me levaram para o Brasil, onde estou radicada há 16 anos.
Como imigrante, mas também como descendente de sírios e de foragido político italiano, não posso ficar indiferente à questão
das migrações de hoje em dia. Ainda mais porque me considero uma migrante de muita sorte por não ter fugido de nada e não ter
encontrado dificuldade nem animosidade ao chegar ao Brasil. Mas igualmente por saber que posso voltar ou ir a outro lugar, caso
queira. São questões recorrentes no meu trabalho, como abordado na série Destino, origem e vice e versa.
Após mais de 13 anos trabalhando e criando na minha própria empresa em São Paulo, resolvi fechá-la e mudar para Paraty, para me
dedicar somente à minha arte.
Os atuais projetos, ainda em fase de pesquisa:
- criar mares seguros para proteger os migrantes durante a viagem, tema inclusive já abordado em Ida só e
Quod erat demonstrandum;
- devolver à Floresta Amazônica o que foi lhe roubado, para deter o processo de destruição.