Page 2 - Homenagem ao desequilíbrio, ao medo e à superação - PÚBLICO
P. 2

Homenagem ao desequilíbrio, ao medo e à superação - PÚBLICO  https://www.publico.pt/2017/05/26/culturaipsilon/noticia/homenagem-...

              peso e à gravidade que os fazem deslizar da rampa, como dejectos despejados num
              contentor. A 7.ª Sinfonia de Beethoven empresta uma solenidade trágica ao modo
              como os corpos escorregam, tentam reerguer-se, vacilam e resvalam, ou se

              entreajudam para ensaiar nova subida esforçada. Este poderoso início, um dos pontos
              altos da peça, é a imagem de uma humanidade esperançada mas indefesa: seres sós e

              desamparados, por vezes cúmplices e solidários, obstinados em sobreviver.









               Coreografia: Yoann Bougeois


              Em aparente queda livre, a plataforma ameaça abater-se sobre o grupo; ou gira como

              um carrossel vertiginoso, e os intérpretes arriscam uma passada estugada em sentido
              inverso, como se contrariando a força centrífuga impedissem o inexorável ciclo da
              rotação do planeta. Até restar uma mulher, a correr em círculo, saltando

              perigosamente sobre os corpos entretanto derrubados no chão. Num colossal
              movimento pendular, a plataforma quase abalroa os corpos que se esquivam no
              último segundo, como crianças imprudentes num jogo atrevido com um baloiço

              gigante, ou a desafiar o vaivém de alterosas ondas oceânicas.



              Associar um registo metafórico ao alto risco físico e ao impacto visual, devedores de
              um frisson circense depurado, faz de Celui qui Tombe uma fábula existencial. As

              sucessivas cenas servem com maior ou menor fluência o temário, mas a sua
              legibilidade permite patamares de fruição para públicos e faixas etárias distintos.



              As silhuetas dos três homens e mulheres, de calças, camisas e saias casuais
              discretamente coloridas, são as de pessoas em trânsito numa cidade qualquer, ou tão

              só uma abstracção de seres humanos. O ranger estrepitoso das quedas da plataforma,
              como se na iminência de se desconjuntar, produz acréscimos de empolgamento; o
              reconhecimento de vozes célebres (Maria Callas, em Casta Diva, de Bellini; ou Frank

              Sinatra, My way, a dança a aproximar-se aqui do ilustrativo) facilita a adesão
              emotiva. Ocasionalmente, Bourgeois cede à pura acrobacia, os nexos dramatúrgicos

              esmorecem e ponderamos a relação entre o aparato performativo e os fins que serve.
              O encandear das cenas tende a repetir-se (alternam obscuridade/luz geral a expor
              maquinaria de palco, silêncio/estampidos naturais amplificados e música...). Há certa
              quebra energética quando, segundos antes do final, os intérpretes pendurados pelos

              braços à plataforma se deixam cair, à vez, exaustos e vencidos.



              Com a herança da dança e do teatro físico a trazer contenção poética e depuração à
              acrobacia e ao léxico sincrético da peça, Bourgeois realiza uma estimulante




 2 de 3                                                                                                    30/05/17, 11:44
   1   2   3