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tos sociais dedicados à luta pela democracia de direitos. Nascida
                                                                 na região nordeste do Brasil e filha de índio, Maria tem sua his-
                                                                 tória de vida marcada pela exclusão social e ausência de recursos
                                                                 básicos que validariam sua dignidade enquanto cidadã. Contudo,
                                                                 mesmo diante de tantos obstáculos que não lhe condicionam um
                                                                 acesso de qualidade à saúde e educação, hoje, aos 50 anos de ida-
                                                                 de, ela conquistou seu espaço na universidade pública e batalha
                                                                 para  superar  as  dificuldades  impostas  pela  pandemia.  Ela  faz  o
                                                                 possível para conseguir acompanhar o ritmo das aulas remotas,
                                                                 mesmo sem ter energia elétrica onde mora. Maria é uma mulher
                                                                 acampada, que tem entre outras atribuições a responsabilidade
                                                                 pela infraestrutura de sua comunidade. É uma mulher que não
                                                                 se lamenta da vida e não se abate com os desafios do cotidiano,
                                                                 ao contrário, compartilha suas experiências e seus conhecimentos
                                                                 com  os colegas  e professores,  trazendo  em sua  fala palavras  de
                                                                 resistência e esperança por dias melhores.
                                                                    A segunda história é de Cleonice Silveira, uma jovem do cam-
                                                                 po que viu sua vida se transformar por meio da educação. Egressa
                                                                 da Licenciatura em Educação do Campo da UFTM e mestranda
                                                                 em Educação em Ciências e Matemática na mesma universidade.
                                                                 Nascida em uma comunidade do campo da região norte do es-
               Maria do Horto (á esquerda) - Arquivo pessoal     tado de Minas Gerais, Cleonice faz parte de uma população que
                                                                 tem como principal prática social econômica a produção de goma
                                                                 (polvilho) e farinha, derivados do cultivo da mandioca. Além disso,
                  Esse cenário de recursos e equipamentos escassos   sua comunidade mantém expressões culturais como o festejo dos
               soma-se à ausência de lazer no campo. Isso só refor-  Santos Reis, as fogueiras de São João, as danças de quadrilha e a
               ça a ideia equivocada de que o meio rural é somente   festa da padroeira da comunidade. Cleonice aprendeu desde cedo
               um espaço de trabalho e produção agrícola. Vasques   a lidar com a agricultura e a enfrentar as dificuldades para ocupar
               (2009) afirma que esse é um dos fatores que tem gerado   uma vaga na escola do campo, e mais tarde na universidade pú-
               conflitos, carências e sentimentos de inferioridade e de   blica. A participação das mulheres tem se intensificado na prática
               impotência à população do campo, sobretudo, causan-  agrícola de sua comunidade ao longo dos anos e um dos maiores
               do adoecimento psíquico.                          desafios que elas enfrentam é lidar com o trabalho braçal e a pou-
                  Apesar de tantas histórias de negação de direitos   ca valorização da produção. Tanto a saúde como a educação foram
               às mulheres e homens do campo, ter sonhos  é uma   (e continuam sendo) negligenciadas nas políticas públicas voltadas
               forma de resistência e motivação para seguir em fren-  para as comunidades do campo. No entanto, Cleonice ressignifica
               te e conquistar espaço de voz. Particularmente, tenho   os entraves e afirma sua resistência dizendo que, apesar de tudo,
               acompanhado isso de perto depois que ingressei na   ela “sempre vai desenhar uma visão romântica de como é viver no
               Licenciatura em Educação do Campo da Universida-  campo, pois se sente acolhida e segura vivendo em comunidade”.
               de Federal do Triângulo Mineiro (Uberaba-MG). Neste   A representatividade da mulher do campo, além de ser im-
               meu mais novo desafio, procuro conhecer um pouco   portante para o desenvolvimento de políticas públicas volta-
               mais das histórias da população campesina e, ao lado   das principalmente para as comunidades rurais, também se faz
               de professores competentes e colegas que residem no   presente nos enfrentamentos socioambientais do planeta. Essa
               campo, me sinto acolhido com tantos saberes científi-  representatividade é fundamental para promover mudanças no
               cos e tradicionais. A partir desse encontro com o co-  cenário  mundial  sobre  o  meio  ambiente.  Dados  do  Painel  In-
               nhecimento, quero compartilhar duas breves histórias   tergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC - Inter-
               de mulheres fortes e batalhadoras, que tive a oportu-  governmental Panel on Climate Change), revelaram que as mu-
               nidade de conhecer durante o curso. Elas representam   lheres compõem mais de 70% do total de pessoas que vivem em
               a resistência da mulher do campo que não sucumbe   condições de extrema pobreza e em situações de vulnerabilidade
               às adversidades da vida. Essas mulheres seguem firme   por conta de secas e inundações.
               na realização de seus sonhos e suas histórias podem   Embora a equidade de gênero ainda seja um desafio no cená-
               ser uma referência importante para tantas outras que   rio político, o Brasil tem excelentes histórias de lideranças femi-
               desejam ter mais visibilidade na sociedade.       ninas, a exemplo de Bertha Lutz (1894-1976), líder na luta pelos
                   A primeira história é da campesina Maria do Horto,   direitos políticos e emancipação das mulheres brasileiras; Alzira
               uma mulher que desde criança acompanha movimen-   Soriano (1897-1963), primeira prefeita da América Latina, eleita


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