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106 Sandra Benato | El Azufre Rojo VIII (2020), 102-124. | ISSN: 2341-1368
simultaneamente e onde ocorre uma identidade mutuamente transitiva. Aquilo que os une
enquanto identidade é igualmente aquilo que os diferencia e aquilo que os diferencia é ig-
ualmente aquilo que os determina, de modo que o interior se traduz em exterior e o exterior
se remete ao interior. Esta transitividade é o movimento da vida por ela mesma, inerente à
traduzibilidade de sua ḥaqīqa (realidade). Não há, nem mesmo na “relação” transcendência/
imanência, um grau hierárquico, mas de correlação: enquanto absolutos não possuem wuǧūd.
O Real é, portanto, a realidade integrada huwa/hiya, que Ibn ‘Arabī chama de Presença
Divina, al-ḥaḍra al-ilāhiyya, def nida por Essência, Atributos e Atos, retornando novamente à
noção de três como fundamento da existência ancorada na unicidade do ser.
“O segredo da existência é (universalmente) correlato”, escreve o Šayḫ, sirr al-wuǧūd murtabit.
Correlação implica tanto em mútua dependência quanto em mútuo depassamento: na medi-
da em que o ser se apresenta, automaticamente se transcende e se renova. Se a reciprocidade
traz uma consciência unitiva do Real, a própria tradução em uma forma se apresenta como
um “outro”, um terceiro que representa a transitividade da identidade, o passamento e de-
passamento entre um e outro, o “diálogo do si mesmo”. Isto é tão intrinsicamente coeso que,
como escreve Ibn ‘Arabī, se algo se despregasse do fundamento da Realidade simplesmente
não existiria.
Como um espaço de consciência, por um lado, e como um “casamento”, por outro, a con-
f uência huwa/hiya produz um “f lho”, um terceiro, simultaneamente uma realidade episte-
mológica e ontológica chamada al-insān al-kāmil, o ser humano perfeito (completo), forma
receptiva a todos os nomes da realidade, o “ponto de visão” do Real, a ‘ayn (a pupila) que se
contempla a si mesma. A noção de ponto de visão também é a de espelho da realidade que
acolhe os inf nitos desvelamentos das formas da vida e que dá suporte ao sentido de identi-
dade humana. As sucessivas formas do Real são singularmente acolhidas numa conf guração
específ ca, chamada ‘ayn tābita, “identidade f xa”, um espaço de receptividade vazio de si que
porta um aspecto do Real. Este conceito responde pela multiplicidade das criaturas enquan-
to local dos atributos de wuǧūd, ou das qualidades da existência, e comportam aspectos da
realidade, especif cidades ou modos de ser/conhecer do Real. Enquanto modo de ser, seu
aparecimento é o aparecimento do Real numa forma determinada. Enquanto modo de con-
hecimento, seu aparecimento testemunha a realidade sob um determinado ponto de vista.
O HUMANO E SEUS CORPOS