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Cabin Fever (*)

             A vida do David estava a correr bem: tinha as notas que queria (a maioria das vezes), saía com ami-
         gos sem preocupação, finalmente podia entrar em discotecas (legalmente), fazia o desporto que adorava
         desde pequeno e sentia abrirem-se-lhe as oportunidades desportivas ou outras. Imaginava um bom futu-
         ro, próspero, confiante que muitos dos seus planos realizar-se-iam.
               Com o início do confinamento, o David, como os outros, foi enviado para casa. Sendo uma pessoa de
         cariz positivo, mas realista, aceitou a razão de ser enviado para casa e, como muitos outros, aguardou o
         seu inevitável retorno ao mundo real, ocupando-se com jogos de computador, estudando ou passando o
         tempo em chamada com amigos, tentando prever o tempo que demoraria esta pandemia a passar, entre
         outras coisas:
               – Então quando acham que isto passa? - perguntou João.
               – Eu acho que isto tudo ainda passa em um mês e meio, é chill, depois quando voltarmos ainda va-
         mos beber um copo ali à esquina, vais ver! - afirmou Francisco animado.
               – Não sei se concordo, pois só vejo os casos a subir dada a “inteligência” de alguns dos nossos com-
         patriotas portugueses - respondeu David. - Sinceramente, não sei dizer quando isto irá acabar, pois de-
         pende da vontade de concordância e já sei que muita gente não tem essa vontade.
               – Tem alguma fé, mano, és sempre um cético. A maioria das pessoas não é incivilizada, vais ver que
         vai ficar bem em um mês e meio - disse Francisco.
               – Pago-te aquela ida ao copo se assim for - brincou David.
               Quanto gostaria de acreditar no que o seu amigo Francisco dizia! pois mesmo cético, David ocupava-
         se principalmente fora de casa, e apenas tratava esta como um intervalo entre dias, quando já não fazia
         sentido estar no exterior. Mas não conseguia, não tinha essa confiança na Humanidade em geral: se já
         os vários grandes problemas como o aquecimento global ou o consumismo excessivo são ignorados pelo
         público em geral por conveniência, é garantido então que este também o vai ser por muitos.
               E então as semanas passavam e o David começou a ficar cada vez mais aborrecido, sempre com os
         mesmos passatempos entre “aulas” online, sempre com os mesmos temas de conversa entre amigos já
         ocos, sempre com o mesmo tom pesado das notícias da manhã, sempre no mesmo ciclo, já quase sem
         estimulação do cérebro. Nada de novo ou emocionante acontecia. Tentava encontrar coisas novas para
         fazer, mas sem conseguir interesse real por nada, apenas experimentando-as e despachando-as, envi-
         ando conhecimento para uma mala já muito empacotada e já muito cansada da razão que assombrava o
         país e que o impedia de sair, só queria voltar ao estado do “antes”, àquela vida que lhe estava a correr
         tão bem. Queria ficar zangado com os irresponsáveis que o mantinham nesta situação, mas acabava por
         sentir uma empatia amarga por eles. Queria ser ativo mentalmente e ensinar novas coisas aos amigos,
         mas muitos destes não se interessavam em saber: «poupa-me que não estamos em aula», diziam al-
         guns, querendo apenas diversão sem sentido. Mandava mensagens a pessoas que considerava chega-
         das, mas elas não respondiam.
               Mais outro mês e já quase não dormia, a Cabin Fever (*) tinha-se instalado totalmente. Quando não
         estava a estudar ou a jogar passava os dias e as noites a andar de um lado para o outro em casa sem
         razão aparente, como um animal numa jaula, tentando ficar com os pés assentes no chão em relação à
         sua vida social, que existia agora através de um ecrã frio e brilhante, e as pessoas com quem falava en-
         contravam-se por detrás de imagens de perfil inanimadas, desmotivando-o de falar sobre os seus proble-
         mas, e desinteressando-se sobre o que diziam, a sua mente, já cansada e confusa, estava quase a en-
         trar em paranoia. A sua memória danificada pela falta de ação fora de casa tirava-lhe ainda mais a confi-
         ança.
               Foi então que, por desejo de se livrar deste cansaço mental, cedeu e entregou-se à diversão, para
         ele, desinteressante, de que os seus amigos tanto gostavam, retirando-se de qualquer substância mais
         interior ou de natureza filosófica. Agora a única forma de voltar a si seria voltar-se para o mundo real.

         (*) Cabin Fever - sensação de ansiedade e desconforto causada por ficar muito tempo preso num certo espaço.

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            VOLUME 6, EDIÇÃO 4                                                                          Página  31
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