Page 6 - ARCANO XIII
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o ar ainda vibrava as últimas notas percutidas pelo martelo
nas cordas tesas instantes após ele afastar as mãos das
teclas responsáveis por desencadear este processo. respirou
profundamente o perfume da floresta enquanto erguia a cervical
para lançar derradeiro olhar à clareira desvirginada. costas dadas
ao piano e contornado o banquinho, seguiu a passos lentos pela
trilha sem olhar para trás. se houvesse olhado teria visto banquinho
e piano dissolverem-se tão rapidamente quanto árvores e
arbustos cobriram o outrora vão em que se encontrava há pouco.
gostava de pensar que ao caminhar se deslocava e permitia-
se preservar hábitos anacrônicos. contudo, não era dado à
procrastinação, logo a trilha de filtrados solares pelo viés das
folhas das frondosas árvores adentrava o breu da caverna
larga de paredes sem céu que ele chamava de escritório.
o ambiente se moldava no entorno de si, obedecendo sua vontade
e surpreendente disciplina mental. sete dígitos tridimensionais
surgiram à sua frente como se em uma tela transparente para
logo fragmentarem-se em setecentos numerais menores de
cores piscantes reluzentes. atualizações em tempo real: cada
fração mostrava a quantidade de recém chegados da crosta
terrena, devidamente divididos de acordo com seu destino.
fixou o olhar em um dos números e todos os demais desapareceram,
dando lugar a uma multidão de rostos projetados no ar. observava
agora individualidades que já não mais existiam: idiomas, idades,
nomes, aparências, raças, classes. identidades reservadas aos
arquivos, porém ainda presentes nos DNAs emocionais e nas mentes
desmemoriadas – e apenas lá – mas cada uma teria que traçar seu
próprio caminho de acesso às lembranças de si mesmo, tateando em
labirintos circulares. conforme desenvolvessem as condições para
que estas informações auxiliassem no entendimento da lei de causa
e efeito – ao transformar a vida vivida em ensinamento – pequenos
fragmentos específicos tornar-se-iam acessíveis por algum tempo.
terra em trAnsito