Page 282 - Principios_159_ONLINE_completa_Neat
P. 282
ENSAIO
Engels: um violino de 200 anos
Meu infortúnio é que, desde que perdemos Marx, eu deveria representá-lo.
Passei a vida inteira fazendo aquilo para que estava preparado, ou seja, to-
cando o segundo violino e, de fato, acredito que me saí razoavelmente bem.
E fiquei feliz por ter um primeiro violino tão esplêndido quanto Marx. Mas
agora que, de repente, devo tomar o lugar de Marx em questões de teoria e
tocar o primeiro violino, inevitavelmente haverá erros e ninguém está mais
consciente disso do que eu (ENGELS, 1995, p. 202, tradução nossa).
Ao contrário do que sugere sua modéstia expressa em carta para Johann Phi-
lipp Becker enviada em 15 de outubro de 1884, Friedrich Engels foi muito mais do que
um “segundo violino” para Karl Marx. Autor de uma vastíssima obra, entre livros,
artigos e cartas, Engels não foi, podemos assegurar sem margem de dúvidas, um mero
coadjuvante na construção do movimento socialista do século XIX, mas sim um pro-
tagonista de primeira linha, ao lado de Marx. Quem diz isso não são os seus discípu-
los, mas sim o próprio Marx em seu famoso Prefácio de 1859. Ali, o autor de O Capital
admite ter sido Engels quem primeiro alcançou a crítica da economia política com
“seu genial esboço das críticas das categorias econômicas”, que havia sido publicado
nos Anais Franco-Alemães em 1844 (MARX, 1999, p. 53).
Não obstante pareça atuar na sombra, o fato é que Engels manteve enorme
protagonismo na construção das principais bases do movimento socialista, ainda que
isso não seja amplamente divulgado. Um exemplo é o caso do Manifesto comunista,
de 1848. Embora tanto Marx quanto Engels sejam apresentados como os autores da
obra, ainda há quem acredite que ela tenha sido escrita majoritariamente por Marx.
Ledo engano. Com efeito, a gênese do Manifesto está em um texto anterior de Engels,
Os princípios básicos do comunismo, publicado em 1847. É surpreendente como a análise
comparada dos dois documentos permite identificar os mais diversos pontos de en-
contro, não apenas no conteúdo, mas também na forma de organização e exposição
das ideias. Talvez, mais uma vez, a modéstia do próprio Engels seja a responsável pela
subestimação de sua participação. Afinal, em diversas ocasiões ele declarou que no
Revista Princípios nº 159 JUL.–OUT./2020 crítico das filosofias idealista de Hegel e materialista de Feuerbach, Marx é muitas
Manifesto “a proposição fundamental pertence a Marx” (ENGELS, 2010, p. 77).
No campo da filosofia, Engels também tem destaque. Ao se apresentar como
vezes visto como o grande pai do materialismo histórico e dialético, ou do socialismo
científico. Mas a verdade é que foi Engels quem formulou e sistematizou uma teoria
geral do materialismo histórico, algo que seu companheiro nunca deixou tão explí-
cito. Isso fica claro em três livros em particular: Dialética da natureza; Anti-Dühring;
e Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Por essa razão, foi Engels, e não Marx, a
Repúblicas Socialistas Soviéticas — URSS (MCLELLAN, 1977, p. 71-72).
280 grande referência teórica para a filosofia marxista ortodoxa divulgada pela União das