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ESPECIAL BICENTENÁRIO 2022
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funda desigualdade social, de golpes e O final dos anos 1980 e o decorrer nos discursos, nas linguagens e na cul-
intensos ataques às liberdades democrá- dos anos de 1990 são caracterizados, en- tura, que dariam forma a sociedade.
ticas, de uma histórica dependência ao tre outras coisas, pela defensiva estraté- Desprezam noções como o conheci-
capital estrangeiro e de uma burguesia gica do socialismo, acompanhada por mento totalizante, valores universa-
que sempre abraçou o reacionarismo. um contundente movimento teórico e listas como a igualdade e a ideia de
País onde qualquer mudança social, ideológico no sentido de encurralar o emancipação humana geral; buscam
por mais moderada que seja, sempre marxismo enquanto alternativa de in- se pautar pela ideia da “diferença” e de
é tradada pelas classes dominantes, na terpretação da realidade social. Por ou- identidades particulares: como raça,
prática, como revolução e comunismo. tro lado, foi um período marcado pela gênero, etnia, sexualidade e suas res-
Portanto, aqui temos uma batalha hegemonia neoliberal, que coincidiu pectivas lutas particulares e distintas
teórica e ideológica de grande enverga- com ascenso e grande influência do contra as opressões, opondo essa pers-
dura a ser realizada, não somente na pensamento, inclusive sobre a esquer- pectiva à uma visão de luta que arti-
sociedade, mas nas fileiras da esquerda. da, do que comumente denominava-se cules todas essas demais lutas sob uma
Demonstrar o caráter de classe do Es- de pós-modernismo. ótica de classe e anticapitalista.
tado e de todos os seus aparatos, dissi- Disseminou-se a reprodução acrí- O pensamento teórico “pós-mo-
pando ilusões acerca da neutralidade e tica de teses que buscavam caracterizar derno” construiu uma crítica e uma
da possibilidade de um republicanis- esse novo período histórico: fim das desconstituição da noção de totalida-
mo efetivo nos marcos do atual Estado. grandes narrativas, das ideologias, das de, substituída pela noção de múltiplas
Uma esquerda que pretenda construir alternativas sistêmicas e de qualquer realidades sociais, isto é, pela natureza
transformações e reformas estruturais herança do iluminismo. Para os pós- fragmentada do mundo e do conheci-
democráticas, populares e socialistas -modernos, a ênfase se dá, sobretudo, mento humano. As relações de classes
precisa estar preparada e disposta a
mudar aparatos como o judiciário, o
parlamento, o midiático e as forças ar- Uma esquerda que
madas. São instrumento de poder das pretenda construir
classes dominantes. A simples presen- transformações
ça da esquerda e um trato “republica-
no” com os mesmos não muda o seu e reformas
caráter de classe, forjado historicamen- estruturais
te. Portanto, cabe à esquerda e as forças democráticas,
populares e democráticas disporem de
uma política que altere sua estrutura, populares e
que exerça influência sobre elas e que socialistas precisa
dispute sua hegemonia. estar preparada e
Essa leitura do caráter de classe de
Estado se assenta, como todos bem sa- disposta a mudar
bem, numa interpretação baseada em aparatos como
pressupostos teóricos marxistas. Resi- o judiciário, o
de aqui, a meu entender, uma outra
grande tarefa aos socialistas e comunis- parlamento, o
tas: recuperar o marxismo como méto- midiático e as
do de compreensão da realidade e de forças armadas.
orientação para a ação política.
Ilustração: Mazé Leite
102 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020