Page 148 - Fernando Pessoa
P. 148

LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            pesa  como uma condenação  dada não  se  sabe  onde,  ou  por
            quem, ou porquê.

                Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um des-
            gosto da  vida e de todos os  seus gestos,  um cansaço anteci-
            pado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anô-
            nimo de todos os sentimentos.  Nestas horas de mágoa sutil,
            torna-se-nos  impossível,  até em  sonho,  ser amante,  ser  he-
            rói,  ser  feliz.  Tudo  isso  está  vazio,  até  na  idéia  de  que  é.
            Tudo isso está dito e outra linguagem,  para nós incompreen-
            sivel, meros sons de sílabas sem  forma no entendimento.  A
            vida é oca,  a  alma é oca,  o  mundo é oco.  Todos  os  deuses
            morrem  de  uma morte maior que a morte.  Tudo está  mais
            vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.


                Se penso isto e olho,  para ver se a realidade me mata a
            sede,  vejo  casas  inexpressivas,  caras  inexpressivas,  gestos
            inexpressivos. Pedras, corpos, idéias — está tudo morto. To-
            dos  os  movimentos  são  paragens,  a  mesma  paragem  todos
            eles.  Nada  me diz nada.  Nada me é conhecido,  não porque
            o estranhe mas por que não sei o que é. Perdeu-se o mundo.
            E  no  fundo  da  minha  alma  —  como  única  realidade  deste
            momento — há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza
            como o som de quem chora num quarto escuro.





                Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e
            nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas
            as reconhecem mesmo assim não as reconheceriam.  Sofro a
            delicadeza  dos  meu  sentimentos  com  uma  atenção  desde-
            nhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados
            os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades,
            pela qual se é realmente poeta romântico.  Encontro-me des-
            crito,  (em parte), em vários romances como protagonista de
   143   144   145   146   147   148   149   150   151   152   153