Page 144 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

          dentro de mim, em casa alheia, torturador intangível.  Quero
          mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me [...]
          siga para diante só e  me  deixe.  Endoideço de ter  que ouvir.
          E  por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na
          minha pele peculiar nos meus nervos  postos à superfície,  as
          teclas  tecladas  em  escalas,  ó  piano  horroroso  e  pessoal  da
          nossa recordação.
              E  sempre,  sempre,  como  que  numa  parte  do  cérebro
          que se tornasse independente,  soam,  soam,  soam  as escalas
          lá embaixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim
          habitar.




              Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem rela-
          ção, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar.
          Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as
          emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por
          minha  mente,  como  um  resumo  escuro  da  história,  nessa
          minha meditação andada à beira-mar.


              Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e
          comigo passearam,  à beira ouvida do mar,  os desassossegos
          de todos os. tempos. O que os homens quiseram e não  fize-
          ram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e nin-
          guém  disse —  de tudo  isto  se  formou  a  alma  sensível  com
          que passeei de noite à beira-mar. E o que os  amantes estra-
          nharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao
          marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o
          que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade,  num
          tempo  que não  foi  esse ou  numa  emoção  que  falta  —  tudo
          isso,  no  meu  passeio  à  beira-mar,  foi  comigo  e  voltou  co-
          migo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento
          que me fazia dormi-lo.
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