Page 140 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO.           183

           brinquedos, e me deixasse só no recreio,  amarrotando  com
           mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas comprimidas? Se
           eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora
           o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança
           a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a
           tristeza  da  criança  no horror  desprevenido  do  meu  coração
           exausto.  Dôo-me com toda a estatura da vida sentida, e são
           minhas as mãos que torcem o canto do bibe,  são minhas as
           bocas  tortas  das  lágrimas  verdadeiras,  é  minha  a  fraqueza,
           é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passam usam-
           me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu
           coração.





               Na minha alma ignóbil e profunda registro,  dia a dia, as
           impressões que formam a substância externa da minha cons-
           ciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me deser-
           tam  desde que  as  escrevo,  e  erram  independentes  de  mim,
           por encostas e relvados de imagens,  por aléias  de conceitos,
           por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada
           me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo,  como
           quem respira melhor sem que a doença haja passado.


               Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes ab-
           surdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são
           os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim.  Tra-
           ço-as numa modorra de me sentir,  como um  gato ao  sol,  e
           releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de
           me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.

               Quando  escrevo,  visito-me  solenemente.  Tenho  salas
           especiais,  recordadas por outrem,  em  interstícios  da  figura-
           ção, onde me deleito analisando o que não sinto, e me exa-
           mino como a um quadro na sombra.
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