Page 136 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
           meu sonho, aquela rapariga encontra o homem que vejo que
           é o marido ou o amante.  Um romântico faria disto  uma tra-
           gédia; um estranho sentiria isto como uma comédia: eu, po-
           rém, misturo  as duas coisas,  pois  sou romântico em mim e
           estranho a mim, e viro a página para outra ironia.

                Uns dizem  que  sem  esperança a  vida é  impossível,  ou-
           tros  que  com  esperança  é  vazia.  Para  mim,  que  hoje  não
           espero nem desespero, ela é um simples quadro externo,  que
           me  inclui a mim, e a  que  assisto  como  um  espetáculo  sem
           enredo,  feito só para divertir os olhos —  bailado sem nexo,
           mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do  sol  muda
           de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos descon-
           formes da cidade.


                Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo.  De-
           senrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e,
           na  distribuição  desencadeada  das  imagens,  visto-me,  como
           as crianças,  de  rei  com  papel de jornal, ou,  no  modo  como
           faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os lou-
           cos,  de  flores  secas  que continuam  vivas nos  meus  sonhos.
           E, acima de tudo, estou tranqüilo, como um boneco de serra-
           dura que, tomando consciência de si mesmo, abanasse de vez
           em  quando a cabeça,  para que o  guiso  no  alto  do  boné  em
           bico  (parte  integrante  da  mesma  cabeça)  fizesse  soar  qual-
           quer coisa,  vida tinida  do morto,  aviso  mínimo ao Destino.

                Quantas vezes,  contudo,  em  pleno  meio  desta  insatis-
           fação sossegada, me não sobe pouco a pouco à emoção cons-
           ciente o  sentimento  do  vácuo  e  do  tédio  de  pensar  assim!
           Quantas vezes não me sinto,  como quem ouve  falar  através
           de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta
           vida estranha à  vida humana —  vida em que  nada  se  passa
           salvo  na  consciência  dela!  Quantas  vezes,  despertando  de
           mim,  não entrevejo,  do  exílio que sou,  quanto  fora  melhor
           ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura
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