Page 138 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
casse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores
ou a visão certa [ ? ] dos loucos...
Era lúcido, triste como um dia frio.
Tenho elementos espirituais de boêmio, desses que dei-
xam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal
hora em que o gesto de a obter dorme na mera idéia de fazê-
lo. Mas não tive a compensação exterior do espirito boêmio
— o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas.
Nunca fui mais que um boêmio isolado, o que é um absurdo;
ou um boêmio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante
a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão
para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci to-
dos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções
desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança
espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não
gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo
espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas
horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás
dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o
aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intui-
tivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as
rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu
ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou.
À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no
outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da mi-
nha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram
sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles
como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da
água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e
noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos
da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.