Page 142 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido
dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando
me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é
em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade de analisá-la. Quem me tornará à in-
fância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tan-
ques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na
hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma
dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das
aléias ao longe, a graça morna dos bancos de pedra para os
que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel per-
dido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a
mágoa com que te sonhei.
Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de
cima de onde morávamos, um som de piano tocado em es-
calas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi.
Descubro hoje que, por processos de infiltração que desco-
nheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a
porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina
hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco
onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual
na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente
presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma
lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de
o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, mi-
nha.