Page 296 - Fernando Pessoa
P. 296
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O conhecimento pessoal precisa se*, também, de liber-
dade de contemplação, e que o meu gênero de amar deseja.
Não podemos fitar, contemplar em liberdade quem conhe-
cemos pessoalmente.
O que é supérfluo é a menos para o artista, porque, per-
turbando-o, diminui o efeito.
O meu destino natural de contemplador indefinido e
apaixonado das aparências e da manifestação das coisas —
objetivista dos sonhos, amante visual das formas e dos aspec-
tos da natureza.
Não é um caso do que os psiquiatras chamam onanismo
psíquico, nem sequer do que chamam erotomania. Não fan-
tasio, como no onanismo psíquico; não me figuro em sonho
amante carnal, nem sequer amigo de fala, da criatura que fito
e recordo: nada fantasio dela. Nem, como o erotômano, a
idealizo e a transporto para fora da esfera da estética con-
creta: não quero dela, ou penso dela, mais que o que me dá
aos olhos e à memória direta e pura do que os olhos viram.
O Amante Visual
Nem em torno dessas figuras, com cuja contemplação
me entretenho, é meu costume tecer qualquer enredo da
fantasia. Vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem
vistas. Tudo mais, que lhes acrescentasse, diminuí-las-ia,
porque diminuiria, por assim dizer, a sua "visibilidade".
Quanto eu fantasiasse delas, forçosamente, no próprio
momento de fantasiar, eu o conhecia como falso; e, se o so-
nhado me agrada, o falso me repugna. O sonho puro en-
canta-me, o sonho que não tem relação com a realidade, nem