Page 294 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

          pa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem,
          mas como rei é  superior,  assim o morto  pode ser disforme,
          mas é superior, porque a morte o libertou.

               Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o
          mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a
          ser escravo; porém agora, só,  sem  necessidade  de ninguém,
          receoso apenas que alguma voz ou presença venha interrom-
          per-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momen-
          tos de excelsis.
               Na cadeira,  aonde me recosto,  esqueço  a  vida  que  me
          oprime. Não me dói senão ter-me doído.





               Nada  se  penetra,  nem  átomos,  nem  almas.  Por  isso
          nada possui nada. Desde a verdade até a um lenço —  tudo é
          impossível.  (A  propriedade  não  é  um  roubo:  não  é  nada.)


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               ANTEROS
                                             O Amante Visual

               Tenho  do  amor profundo e do uso  proveitoso  dele  um
          conceito  superficial  e  decorativo.  Sou  sujeito  a  paixões  vi-
          suais. Guardo intato o coração  dado a mais irreais destinos.

               Não  me  lembro  de  ter  amado  senão  o  "quadro"  em
          alguém,  o  puro  exterior  —  em  que  a  alma  não  entra  para
          mais que fazer esse exterior animado e vivo —  e  assim  dife-
          rente dos quadros que os pintores fazem.

               Amo assim:  fixo, por bela, atraente, ou, de outro qual-
          quer modo, amável, uma figura, de mulher ou de homem —
          onde  não  há  desejo,  não  há  preferência  de  sexo  — e  essa
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