Page 289 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
pouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propó-
sitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem
rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar.
Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regres-
sando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho.
Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se
por este gesto da raiva que não sinto.
Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia
que fazemos de alguém. É a um conceito nosso — em suma é
a nós mesmos — que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor se-
xual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um
corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um
prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa. O ona-
nista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita
expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem
se engana.
As relações entre uma alma e outra, através de coisas
tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os ges-
tos que se empreendem, são matéria de estranha complexi-
dade. Na própria arte em que nos conhecemos, nos desco-
nhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sen-
tem-no por troca, e cada um quer dizer uma idéia diferente,
uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma
diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a ati-
vidade da alma.
Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensa-
mento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais
da ilusão de exprimir. E estas considerações, que formo e
abandono, não nasceram de coisa alguma — de coisa al-
guma, pelo menos, que me esteja na platéia da consciência.
Talvez aquela desilusão do caixeiro de praça com a rapariga