Page 288 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
           ambos  e  sem  dúvida  casados  cada  um  para  seu  lado  [...],
           se  eles  por  acaso  olharem  para  estas  páginas,  acredite  que
           reconhecerão  o  que  nunca  disseram  e  que  não  deixarão  de
           me  ser gratos por eu ter  interpretado tão bem,  não  só  o  que
           eles são realmente,  mas o que eles nunca desejaram  ser nem
           sabiam  que eram...
               Eles, se me lerem,  acreditem  que  foi  isto que realmente
           disseram.  Na  conversa  aparente  que  eles  escutaram  um  ao
           outro  faltavam tantas coisas  que  (...)  —  faltou  o  perfume  da
           hora, o aroma do chá,  a significação para o  caso  do  ramo  de
           (...)  que  ela  tinha  ao  peito...  Tudo  isso,  que  assim  formou
           parte  da  conversa  eles  se  esqueceram  de  dizer...  Mas  tudo
           isto  lá  estava  e  o  que  eu  faço  é,  mais  do  que  um  trabalho
           literário,  um  trabalho  de  historiador.  Reconstruo,  comple-
           tando...  e isso me servirá de desculpa junto  deles,  de  ter  es-
           tado  tão  fixamente  a  escutar-lhes  o  que  não  diziam  e  não
           quereriam  dizer.




               Não se subordinar a nada —  nem a um homem,  nem  a
           um  amor,  nem  a  uma  idéia,  ter  aquela  independência  lon-
           gínqua que consiste em não crer na verdade, nem,  se a hou-
           vesse,  na  utilidade  do  conhecimento  dela  —  tal  é  o  estado
           em  que,  parece-me,  deve  decorrer,  para  consigo  mesma,  a
           vida  íntima  intelectual dos  que  não  vivem  sem  pensar.  Per-
           tencer — eis a banalidade.  Credo,  ideal,  mulher ou  profissão
           — tudo isso é a cela e as algemas.  Ser é estar livre.  A mesma
           ambição se vão orgulho  e  paixão  é  um  fardo,  não  nos  orgu-
           lharíamos  se  compreendêssemos  que  é  um  cordel  pelo  qual
           nos puxam. Não: nem ligações conosco!  Livres de nós como
           dos outros, contemplativos sem êxtase,  pensadores sem con-
           clusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que
           as  distrações  dos  algozes  concedem  ao  nosso  êxtase  na  pa-
           rada. Temos amanhã a guilhotina.  Se a não tivéssemos ama-
           nhã  tê-la-íamos  depois  de  amanhã.  Passeemos  ao  sol  o  re-
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