Page 290 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos amorosos que
            os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga
            náusea que trago  comigo e  me  não expeli  [?]  fisicamente...
                Disse  mal o  escoliasta  de  Virgílio.  Ê  de  compreender
            que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.





                Ninguém compreende outro.  Somos, como disse o poe-
            ta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define
            e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é
            outra alma, não saberá senão o que lhe  diga  uma  palavra —
            sombra disforme no chão do seu entendimento.
                Amo   as expressões  porque  não  sei  nada  do  que  expri-
            mem.  Sou como o mestre de  Santa Marta  [?]:  contento-me
            com o que me é dado. Vejo, e já é muito.  Quem é capaz de
            entender?
                Talvez  seja por este ceticismo do  inteligível  que eu en-
            caro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um
            sorriso (Tudo é natural,  tudo  artificial,  tudo  igual).  Tudo o
            que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde
            branco da manhã que há de vir,  seja o esgar  falso  em  que  se
            contrai o rosto de quem está a  sofrer perante testemunhas a
            morte de quem ama.
                Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam.
            Meu coração não está neles nem quase minha atenção que os
            percorre de fora, como uma mosca por um papel.
                Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada:  só um
            esquema objetivo de cores,  de formas,  de expressões  de  que
            sou o espelho oscilante por vender inútil.




                Pensaste  já,  ó  Outra,  quão  invisíveis  somos  uns  para
            os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Ve-
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