Page 314 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

         receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha
         mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.

              Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso dei-
         xar  de  escrever.  Escrever  é  como  a  droga  que  repugno  e
         tomo, o vício que desprezo e em que vivo.  Há venenos ne-
         cessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da
         alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, pa-
         poulas negras achadas ao pé  das sepulturas  [...],  folhas lon-
         gas  de  árvores  obscenas  que  agitam  os  ramos  nas  margens
         ouvidas dos rios infernais da alma.

              Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem,  por-
         que tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como
         o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito
         na  praia  pela  maré  alta,  e  cuja  água sumida nunca  mais  re-
         gressa ao mar.




              Mesmo que eu quisesse criar, (...)

              A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio
          moderno torna  impossível o  aparecimento de  qualidades  de
          construção no espírito.


              Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que
          há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em
          que  há  encadeamento o de  uma  demonstração  matemática.
              O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da
          realidade.


              A arte é uma ciência...

              Sofre ritmicamente.
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