Page 317 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no
escritório quase deserto. Dois empregados estão doentes e os
outros não estão aqui. Estou só, salvo o moço longínquo.
Tenho saudades da hipótese de poder ter um dia saudades, e
ainda assim absurdas.
Quase peço aos deuses que haja que ma guardem aqui,
como num cofre, defendendo-me das agruras e também das
felicidades da vida.
Como há quem trabalhe de tédio, escrevo, por vezes, de
não ter que dizer. O devaneio, em que naturalmente se perde
quem não pensa, perco-me eu nele por escrito, pois sei so-
nhar em prosa. E há muito sentimento sincero, muita emo-
ção legítima que tiro de não estar sentindo.
Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver
atinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes ho-
mens de ação, que são os santos, pois que agem com a emo-
ção inteira e não só com parte dela, este sentimento de a vida
não ser nada conduz ao infinito. Engrinaldam-se de noite e
de astros, ungem-se de silêncio e de solidão. Nos grandes
homens de inação, a cujo número humildemente pertenço,
o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as
sensações, como elásticos, para ver os poros da sua falsa con-
tinuidade bamba.
E uns e outros, nestes momentos, amam o sono, como
o homem vulgar que nem age nem não age, mero reflexo da
existência genérica da espécie humana. Sono é a fusão com
Deus, o Nirvana, seja ele em definições o que for; sono é a
análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência