Page 50 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO 89
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço.
Tenho a alma reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui,
que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã, não
sei senão que não dormi, e a confusão de vários intervalos
põe grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para
tantos, maravilhosas aléias dos que nunca me conhecerão!
Estagno entre vigílias, como quem nunca ousou ser supér-
fluo, e o que medito estremunha-se com um sonho ao fim.
Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombrada de
espectros timidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado,
ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno.
Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de
criança vestidos vós mesmos de bibe!
E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco
da minha vagabundagem folha. Qualquer vento lento me
varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os
acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés
arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fe-
chada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o
meu deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando
nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta
eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que
me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhe-
cesse e me estranhasse. Sinto que os olhos também com ór-
bitas sentidas sob pálpebras que as roçam, e não quero saber
de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!