Page 47 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um
vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo
de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia,
libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à
velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o
repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada. Ah,
que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida,
e para a grande ternura dela! Quase que choro, vendo escla-
rear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita,
e quando os taipais da mercearia da esquina já se revelam
castanho escuro sujo na luz que se estravasa um pouco, o
meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa
a conhecer a segurança de se não sentir.
Que manhã esta mágoa! E que sombras se afastam? E
que mistérios se deram? Nada: o som do primeiro elétrico
como um fósforo que vai alumiar a escuridão da alma, e os
passos altos do meu primeiro transeunte que são a realidade
concreta a dizer-me, com voz de amigo, que não esteja assim.
Não compreendo senão como uma espécie de falta de
asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma
e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superficie de
nunca mudar.
Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o des-
tino, mudar de vida como mudamos de roupa — não para
salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele
respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chama-
mos asseio.
Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da
vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há
muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma