Page 44 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
líssimo bandido. Meu coração começa a bater novo. O apo-
calipse tinha passado. Fêz-se uma pausa.
E com que alívio — luz forte e clara, espaço, trovão
duro — este troar próximo já afastado nos aliviava do que
houvera. Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões
inteiros. Reparo que restava pouco ar no escritório. Notei que
havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos haviam estado
calados. Soou uma coisa trêmula e crespa: era a grande folha
espessa do Razão que o Moreira virará para diante, brusca-
mente, para verificar.
a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num
cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez
em quando, com o som de já longe, um trovão curto res-
mungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado
* também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais
ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos
Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente,
insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou
alta no telefone do gabinete, "Então ainda está a falar?"
E houve um som de fala seca e à parte — comentário, obs-
ceno (adivinha-se) á menina longínqua.
Vi e ouvi ontem um grande homem. Não quero dizer
um grande homem atribuído, mas um grande homem que
verdadeiramente o é. Tem valia, se a há neste mundo; co-
nhecem que tem valia; e ele sabe que o conhecem. Tem,
pois, todas as condições para que eu o chame um grande ho-
mem. É, efetivamente, o que o chamo.