Page 41 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada
sua.
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capaci-
dade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece
com as pequenas coisas. É preciso uma prodigiosa inteligên-
cia para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que
é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz
sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em
cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no es-
critório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é
como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança con-
tente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria
nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no emba-
ciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há
regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso
de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me
UM- carro elétrico e a espantosa faculdade de abstração que
tenho e cultivo.
Num carro elétrico em marcha eu sei, por uma atitude
constante e instantânea de análise, separar a idéia de carro da
idéia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais
diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do
carro mas dentro da mera-velocidade dele. E, cansado, se
acaso quero o delírio da velocidade enorme [?], posso trans-
portar a idéia para o Puro imitar da velocidade e a meu bom