Page 36 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção,
a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente
que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igual-
mente visíveis perante mim: a folha onde escreve com cui-
dado, nas linhas pautadas, os versos da epopéia comercial de
Vasques e Cia., e o convés onde vejo com cuidado, um pouco
ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as
cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas que sossegam na
viagem.
(Se eu for atropelado por um bicicleta de criança, essa
bicicleta de criança torna-se parte da minha história.)
Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as per-
nas se vêem.
Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo
— [...] mesmo ao pé de onde sinto que estou — sai o vulto
do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros.
O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito
[...] Começo um outro lançamento. Tento ver porque ia en-
ganado. É a débito e não a crédito a conta do Marques
(Vejo-o gordo, amável, piadista e, num momento, o navio
desaparece [?]).
A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. De-
pois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da
aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do
oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na
vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber
com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do
universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam
montanhas para não fazer nada lá no alto.