Page 39 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revi-
siono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o
som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; segu-
ros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se
despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que
vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse
neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar;
correr de água;' 'então não te disse que"... e o silêncio apita
do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tem-
po, entre cenestesias. E é prodigioso pensar que eu não que-
reria se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve
vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento,
da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato
da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento,
que a maioria, senão a totalidade, dos homens, assim vive,
mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a
mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos
propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que
vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que
vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém
me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão so-
nhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e
tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os
passos cessam no fim do corredor. Os pratos levados erguem
a voz de água e louça. [..-.]
Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do
usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e
grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana.
— o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com
todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório