Page 34 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-li-
vros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-
me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for
a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades pe-
rante as grandes ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vas-
ques e Cia. será um dos grandes dias da minha vida. Seio
corn uma antecipação amarga e irônica, mas sei-o com a van-
tagem intelectual da certeza.
Hoje como me oprimisse a sensação do corpo aquela
angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem
bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja
sobreloja baseio a continuação da minha existência. E, como
ao sair eu [?], o criado verificasse que a garrafa de vinho fi-
cara em meio voltou-se para mim e disse: "até logo, sr. Soa-
res, e desejo as melhoras".
Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma
aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as
afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reco-
nhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos bar-
beiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma sim-
patia espontânea, natural que não posso orgulhar-me de re-
ceber dos que privam comigo em mais intimidade, impro-
priamente dita...
A fraternidade tem sutilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre
um milionário americano, com bens na Inglaterra ou Suíça e
o chefe Socialista da aldeia — não há diferença de qualidade
mas apenas de quantidade. Abaixo [...] destes, nós, os amor-
fos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mes-