Page 33 - Fernando Pessoa
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72 FERNANDO PESSOA
vés de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar...
Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do cho-
ro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que
ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no
gesto de mão com que cerro o livro encubra o passado irrepa-
rável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia
nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência mis-
turada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos
da saudade e da desolação.
Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma
represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta
Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta
gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e
o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever — dor-
mir — que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do
Destino?
Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses
também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque
sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de
conseguir ou o destino de se conseguir conosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só
me distingue deles o saber escrever. Sim, é um ato, uma rea-
lidade minha que me diferença deles. Na alma sou eu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopo-
listase (...).
Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo,
por um bilhete para [a] Rua dos Douradores.