Page 35 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
tre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de
fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta
anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me
desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão me-
tade do vinho.
O homem magro sorriu desleixadamente. Olhou-me
com uma desconfiança que não era malévola. Depois sorriu
novamente, mas com tristeza. Baixou, depois, outra vez, os
olhos sobre o prato. Continuou jantando em silêncio e ab-
sorção.
As carroças da rua ronronam, sons separados, lentos,
de acordo, parece, com a minha sonolência. É a hora do al-
moço mas fiquei no escritório. O dia é tépido e um pouco
velado. Nos ruídos há, por qualquer razão, que talvez seja a
minha sonolência, a mesma coisa que há no dia.
Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas
coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco
assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque
nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas im-
pressões, creio, se formará uma parte — a parte interna, tal-
vez — da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo
que têm igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto
consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a mi-
nha tragédia, e a comédia dela.
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço
a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e, ao