Page 43 - Fernando Pessoa
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inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Mo-
reira, do Vieira caixeiro de praça e do Antônio moço do es-
critório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço-chave
LISBOA.
Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram
para a minha visão do mundo coeficientes de correção. Creio
que é esta a frase, cujo sentido exato evidentemente ignoro,
com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à
matemática para ela poder andar até à vida. Se é, foi isso
mesmo. Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção
valha pela metáfora que falhou.
Considerando, aliás, e com a clareza que posso, o que
tem sido aparentemente a minha vida, vejo-a como uma coi-
sa colorida — capa de chocolate ou anilha de charuto — var-
rida, pela escova leve da criada que escuta de cima, da toalha
a levantar para a pá de lixo das migalhas, entre as côdeas da
realidade propriamente dita. Destaca-se das coisas cujo des-
tino é igual por um privilégio que vai ter a pá também. E a
conversa dos deuses continua por cima do escovar, indife-
rente a esses incidentes do serviço do mundo.
Sim, se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, or-
namental, não teria sido nem esse breve episódio de papel
bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte —
"não, muito obrigada" — e recolheria ao aparador para en-
velhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo
prático, vou com o pó do que resta do corpo de Cristo para o
caixote do lixo, e nem imagino o que se segue, e entre que
astros; mas sempre é seguir.
O moço atava os embrulhos de todos os dias no fim cre-
puscular do escritório vasto. "Que grande trovão", disse,
para ninguém, com um tom alto de "bons dias", o crude-