Page 5 - Revista PSIQUE Ciência e Vida
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Na Rede 04/05
A internet, uma
Aldeia de Ódio
As redes sociais acumulam eventos de disseminação de raiva exacerbada na
defesa de um posicionamento, mas há uma grande diferença entre posição firme
de opinião e manifestação de fúria
Por Nicolau José Maluf Jr.
o receber o título honoris causa na
Universidade de Turim, na Itália,
Umberto Eco disse que “o drama da
Ainternet é que ela promoveu o idiota da
aldeia a portador da verdade”; Para o autor, antes
das redes sociais, os “idiotas da aldeia” tinham
direito à palavra “em um bar e depois de uma taça
de vinho, sem prejudicar a coletividade”.
Fora de contexto, pode parecer uma atitude
elitista, antidemocrática. Mas ele parece fazer
referência a atividades como as do haters, que não
só postam e viralizam mensagens de ódio, mas
também são conhecidos pela forma rasa com que
manejam supostas informações, sem checagem.
Duas obras podem nos ajudar nesse panorama.
Uma do própria Eco. Na criação literária O Nome
da Rosa há um embate entre os personagens
Jorge de Burgos, monge e bibliotecário, e Willian
de Baskerville, franciscano: “O riso é a fraqueza,
a corrupção, a insipidez de nossa alma”, afirma Existe diferença entre um posicionamento
Jorge de Burgos. O riso seria o contrário da fé. Fé firme e a raiva e o ódio, a destrutividade e a
que, no viés do monge, implica atitude constrita e negação de qualquer positividade no outro.
abandono da razão. Há aí, nesse caso, a ação de um mecanismo
Em paralelo, no desabafo em forma de livro (inconsciente) em que projetamos no outro toda
Escuta, Zé Ninguém!, Reich descreve a gênese e o e qualquer imperfeição que possamos portar,
modo de ser do Homo normalis e sua comezinha e no tornamos exemplares. Num plano mais
existência paulada pelo rancor, ressentimento, profundo, o “zé ninguém” tenta anular a dor
inveja e destrutividade, tanto no plano pessoal insuportável que a vitalidade no outro, vivida
quanto no social. É o falso moralista, o vigia dos como inalcançável para ele, evoca.
usos e costumes, a propagadora das aledicências Essa é uma das sementes da radicalização,
sobre a vida sexual da vizinhança. Um protótipo do exacerbamento verificado nas redes
¹ O conceito de frustação da combinação de frustação afetiva sexual¹ e sociais, quando das postagens como ataques a
afetiva sexual, na obra da necessidade de destruir a vida e a felicidade personalidades e nas manifestações político-
reichiana, não guarda
relação unicamente com em quaisquer de suas modulações enquanto partidárias de qualquer tribo. Aí, essas redes
o fator quantitativo, não é busca entregar a sua existência às mãos de uma merecem realmente a adjetivação “esgotosfera”.
meramente atividade sexual.
liderança dominadora. São irrupções da camada Detalhe importante: na obra de Eco
da personalidade portadora do que Reich definiu mencionada, a biblioteca (simbolizando o
como impulsos secundários, subjacentes à fachada conhecimento) termina consumida por um
apresentada socialmente. incêndio provocado. O idiota da aldeia vence. •
Nicolau José Maluf Jr. é psicólogo, analista
reichiano, doutor em História das Ciências,
Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ)
PSIǪUE Março 2019 - Ano 12