Page 6 - 7ª Edição - Jornal Notícias da Gandaia
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REPORTAGEM | MAIO 2019 Notícias da Gandaia
A imagem de um S. João "aus­ tero" é negada pelo carácter po­ pular que as festividades assu­ mem. A festa, extrovertida e popular, pela grande variedade de aspectos que apresenta e ri­ queza da sua problemática e das suas significações, nomea­ damente no que se refere às vir­ tudes das ervas, do fogo e das águas nessa noite, às fogueiras e banhos rituais e práticas divi­ natórias, relacionadas sobre­ tudo com o casamento, a saúde e a felicidade, dão a imagem do S. João "casamenteiro" e por vezes "brejeiro".
As razões apontadas para a rápida integração das marchas no calendário da cidade care­ cem de sustentação, mas sabe­ se que reforçam a identidade e alimentam a competição com base em antigas rivalidades bairristas. Tendo em conta esta necessidade de ligação com o passado, as comemorações ofi­ ciais são inicialmente o núcleo central que serve de pretexto para convocar os momentos eleitos da história e para conso­ lidar esta nova prática social."
O Sector de Acção Cultural da Câmara Municipal de Almada, após investigação, destaca uma hipótese que não pretende ser completa, nem conclusiva. Acredita­se que estas festas serão as herdeiras das comemo­ rações do solstício de Verão, que se festejava no dia em que a Igreja Cristã definiu como o dia do nascimento de S. João, para talvez, de alguma forma aproveitar a grande adesão po­ pular a estas festas, transfor­
CRÓNICA |
O SÃO JOÃO
DE ALMADA
|Francisco Silva
João usava uma roupa de pêlos de ca­ melo e um cinturão em torno dos rins. Seu alimento consistia em gafanhotos e mel sil­ vestre (Mateus 3, 4).
É este João, chamado Batista porque ba­ tizava, que o calendário litúrgico católico ce­ lebra a 24 de junho, três dias após o solstício de verão, no fim do ciclo festivo dos chama­ dos Santos Populares (Santo António, São Pedro e São João). Estas celebrações têm origem nos rituais propiciatórios pré cris­ tãos, como é a festa da Maia (celebrada a 1 de Maio), ou mesmo o saltar a fogueira, que procuravam assegurar a regularidade das estações do ano, nomeadamente a passa­ gem da primavera para o verão, associada à abundância, ao surgimento dos primeiros frutos e início da época das colheitas.
A celebração litúrgica em honra de São João, padroeiro de Almada, ocorre durante dois dias. No dia 23 a imagem do Santo, que está durante o ano na Igreja de Santiago lo­ calizada no coração do núcleo antigo de Al­ mada, é levada em procissão até à capela da Quinta de São João da Ramalha, onde per­ manece até ao dia seguinte. Importa aqui salientar que o lugar da Ramalha, embora atualmente apresente uma paisagem ur­ bana consolidada, constituiu até à segunda metade do século XX uma zona rural de ter­ renos férteis, divididos por diversas quintas agrícolas, que se estendiam pela encosta vi­ rada a sul, hoje atravessada pela Avenida
Numa tentativa de esvaziar a celebração de sentido mágico e religioso, data de finais do século XIX, uma lenda várias vezes repe­ tida, que atribui a mesma a uma suposta ba­ talha, ocorrida na véspera do dia de São João, entre cristãos e mouros nos campos da Ramalha. Na mesma linha adotou­se re­ centemente a tradição, salazarista e lis­ boeta, das marchas populares que atualmente são o ponto alto das comemo­ rações do São João em Almada.
O significado simbólico da romaria, en­ quanto ritual de fecundidade, que unia o es­ paço urbano aos campos envolventes, acentuava­se na tradição oral, segundo a qual o santo vinha passar a noite à Ramalha, para dormir com uma santa. Por outro lado, apesar da betonização da paisagem e do desaparecimento das vinhas e cearas, a ce­ lebração litúrgica do São João continua viva e congrega muitos almadenses que anual­ mente acompanham no seu percurso de ida e volta. Nesse sentido a celebração do São João em Almada, constitui uma manifesta­ ção de Património Cultural Imaterial, pro­ fundamente enraizada na história e na identidade do concelho. |
RAÍZES PROFUNDAS
mando­as, ou pelo menos ten­ tando, em manifestações de fé cristã. O que em Almada falhou, na nossa opinião redundante­ mente, porque ao longo dos tempos, a comunidade cristã mais consequente, sempre es­
teve afastada da própria procis­ são do S. João, enquanto o resto da população era o "motor" que ao organizar e ao impor a sua organização levava a que esta tradição antiquíssima se não perdesse, mas ao
mesmo tempo impunha na pró­ pria festa cristã, todos os ritos pagãos, dos frutos, da vinha das ligações amorosas.
A discussão à volta da voca­ ção das marchas e da sua viabi­ lidade futura esteve sempre latente. Já nos anos noventa, se questio­ nou a sua eterna vocação "passadista" e o alegado desfasamento deste tipo de festividades em bairros com os de antigamente. Apesar disso, as marchas resistem, mais ou menos populares, com o espírito de despique bairrista in­
tacto. |
Bento Gonçalves. No dia 24 de junho, fe­ riado municipal, a imagem do Santo é trans­ portada em procissão de volta à igreja de Santiago, trazendo consigo uma coroa de frutos, que tradicionalmente eram os pri­ meiros colhidos na Ramalha.
Existe uma ligação dos cultos solares, pré cristãos, na sua transposição para a celebra­ ção do Santo que anuncia a chegada do Messias, a Boa Nova em paralelo com o anúncio da colheita dos novos frutos. Sendo a agricultura em Almada a principal atividade económica até finais do século XIX, esta celebração revestia­se de grande significado para as gentes do concelho. Na tradição popular, existia uma relação direta entre a romagem da imagem do santo pa­ droeiro à Ramalha e a abundância das co­ lheitas. Esta encontra­se patente numa petição apresentada ao bispo de Lisboa em 1734. Nesse documento queixavam­se os suplicantes que durante os dois anos ante­ riores os confrades de São João Batista não levaram a imagem à Ramalha, alegando que a capela ficava distante da vila, e por essa razão as colheitas foram fracas, algo que se reconhecia por castigo divino.


































































































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