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Notícias da Gandaia JULHO 2019 | CRÓNICA 13
O PLASTICUM
|Luísa Costa Gomes
Olhe, desculpe, faz favor, olhe,
familiar, é só estender o braço e largar o lixo no caixote. Não tem de se desviar da sua rota. Admito que abrir a tampa pode dar traba- lho para quem já vai cansado de tanto divertimento, a Câmara aqui errou, esteve mal, os caixotes de- viam ter uma tampa automática, como essas luzes que se acendem à nossa passagem. Já estou a maçá-lo com esta história do pape- linho e do pauzinho? Enjeita a res- ponsabilidade do pauzinho e do papel do gelado? Aceita a da lata de cerveja? A lata de alumínio vai demorar duzentos anos a desapa- recer! Vai andar para aqui de praia em praia, de maré em maré, acaba incrustada no gelo de algum cír- culo polar. Muito bem, não se enerve. E a casca de banana, tam- bém não lhe pertence? Claro que foi o menino, mas o menino não é seu? Não reconhece a paternidade ao menino por causa do lixo do menino que é tão seu como se fosse feito por si? Ele é pequenino, ainda não sabe, embora provavel-
mente aprenda mais depressa do que o senhor que a praia não é nossa, nem é vossa, é um dom que já aqui estava muito antes de nós nascermos e muito antes de termos tido a ideia de vir sujá-la. Estamos de acordo, a casca de ba- nana é orgânica, não discuto. Mas também suja.
quarenta milhões de embalagens de plástico de comida para fora, mil milhões de palhinhas, dez mil milhões de beatas, setecentos e vinte e um milhões de garrafas de plástico. Cada garrafinha demora quatrocentos e cinquenta anos em média a desparecer. Todo esse plástico anda no mar e chega às nossas praias vindo da Turquia e da Espanha. Eu não atiro o lixo para o chão por inconsciência, nem por falta de vergonha. Aqui onde me vê sou um ecologista de- siludido, batido pela vida, esma- gado pelo gigantismo da tarefa que temos pela frente. Repare que as pessoas em geral, desde que tenham dois dedos de testa e olhos na cara, estão alarmadas porque têm consciência da catás- trofe ecológica e climática que vi- vemos, enquanto os governantes conversam entre si e estudam for- mas de ir encanando a perna à rã com paninhos quentes. O mais que se pode fazer é responsabili- zar o comum dos mortais pela pa-
lhinha e pela embalagem de plás- tico que o comum dos mortais, aliás, não criou! Mas as empresas globalmente mais poluidoras, a Coca-Cola, a Pepsi Cola, a Nestlé, a Danone e a Mondelez Internatio- nal (Nabisco, Oreo, Ritz, etc,) quem é que lhes deita a mão? Não parecem preocupadas em mudar os seus esquemas. Como as pes- soas, por mais conscientes e acti- vistas que sejam, não podem desistir completamente dos seus padrões de consumo sem enlou- quecer, deixar crescer umas bar- bas e ir pregar para o deserto a comer gafanhotos, eu atiro para o chão, sim, em sinal de protesto ni- hilista! É menos de uma gota no oceano! Quando quiserem conver- sar sobre a mudança de para- digma do descartável para o sustentável, podemos conversar.” E eu, que nem sabia que ainda havia nihilistas, apanhei o lixo dele e fui pôr no caixote, claro, o que é que eu havia de fazer? |
deixou cair o papel do gelado. Aquele ali. Não é seu? Como é que sabe que não é seu, está assinado? Bordou-lhe o monograma? É seu, sim, que eu bem o vi atirar o papel do gelado para o chão. E o pauzi- nho. E a embalagem do iogurte. E o pacote do sumo. E a lata da cer- veja. Nem foi para o chão, foi para o ar, para trás das costas. Não fez uma covinha discreta no entre per- nas para sepultar o seu lixo. Isso era capaz de demonstrar alguma consciência da sua pouca-vergo- nha. Já viu que a Câmara teve o cuidado de encher a praia de cai- xotões verde-tropa, brutos, mal jeitosos, postados ali e ali e ali até ao infinito, de três em três passos? Não é artilharia de costa, não é ins- talação de algum artista de inter- venção. A Câmara desfeou um dos mais belos areais da país por sua causa e o senhor não lhe corres- ponde com o mesmo afecto?! À ida, no caminho para o automóvel
E nisto, perante o meu espanto, o que eu imaginara ser um porca- lhão poluidor e inconsciente er- gueu-se numa voz de tempestade e fez-me o Sermão da Areia, que foi mais ou menos assim: “Cresci ecologista ferrenho e ando a pre- gar a reciclagem desde que tirei os cueiros. Os plásticos biodegradá- veis aparentemente levam mais tempo que os outros a degradar- se! Sabe quantos milhões de tone- ladas de resíduos plásticos são produzidos anualmente na Eu- ropa? São vinte e sete milhões. E lixo descartável? Tem presentes os números? Duzentos e cin- quenta milhões de copos de café,

