Page 4 - Cassandra
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N O T A   E D I T O R I A L





                                      Q                                     consciência por debaixo do ser inebriado, can-
                                          uem  somos  nós?  Quem  era  Cassan-
                                   dra? Suponho que sejam essas as questões que   sado e mecanizado que o quotidiano cria, mas
                                   primeiro subam às mentes dos nossos leitores,   por um breve momento apareceu um vislum-
                                   e aquelas que eu terei de responder neste tex-  bre de toda uma humanidade, toda uma exis-
                                   to. Sou da opinião que, para responder à pri-  tência,  um  ser  novo  e  que  nunca  antes  fora
                                   meira  mais completamente,  terei  de  começar   deixado respirar, sufocada na pressão da esco-
                                   pela  segunda  questão,  e  abordar  quem  era  a   laridade e da vida. E o que saiu de lá? Em ge-
                                   Cassandra a quem esta revista presta homena-  ral,  muito  cinzento,  muita  desolação…  Um
                                   gem.                                     medo de desapontar,  um medo de errar, um
                                          Dizia  o  académico  romano  Higino:   medo de viver uma vida mal vivida, uma vida
                                   “Cassandra, filha do rei e da rainha [de Troia,   de tristeza, sem ambições. Um medo do medo,
                                   compreenda-se], no templo de Apolo, exausta   que é a única coisa a temer. E, tal como Cas-
                                   da  veneração,  diz-se  ter  adormecido;  Apolo   sandra, um olhar perturbador perante o futu-
                                   desejava  possuí-la,  mas  ela  negou-lhe  o  seu   ro,  que  parece  tão  realístico  quanto  é  vergo-
                                   corpo.  Por  causa  disso,  ele  amaldiçoou-a  a,   nhosamente deprimente, um futuro no qual as
                                   quando profetizando visões do futuro, não ser   estruturas falharam, os sonhos foram esmaga-
                                   acreditada.”                             dos  e  o  sofrimento  é  comum.  Consegue-se
                                          Eis  Cassandra,  a  nossa  Cassandra,   perceber de onde vem tal pessimismo; nasce-
                                   amaldiçoada pelo maior crime dos Gregos – ir   mos num mundo no qual a violência, a irracio-
                                   contra  a  vontade  dos  deuses;  e  castigada  de   nalidade  cresciam,  no  qual  as  sementes  do
                                   maneira  muito  severa  –  condenada  a  ver  o   ódio  floresciam;  se  nos  últimos  anos  temos
                                   futuro e nunca ser acreditada, ver todos a des-  visto as suas flores desabrochar, há que temer
                                   prezar  os  seus  avisos  e  as  suas  profecias,  a   no futuro sermos nós a colher os seus frutos,
                                   desconfiar  da  sua  palavra,  a  ignorar  os  seus   não quem os semeou.
                                   conselhos; filha de Troia, ela viu a sua cidade   Seria injusto dizer que é uma melan-
                                   em chamas mal Helena entrara nesta, enquan-  colia  pessimista  que  reina  suprema.  Existe
                                   to todos os outros a celebravam.         também um maravilhoso otimismo, uma espe-
                                          Mas a Guerra de Troia passou-se há   rança num futuro a vir, um futuro de amor,
                                   muitos milénios, e nenhum dos que contribuí-  paz e fraternidade, tão bom ou melhor do que
                                   ram para esta revista é uma princesa profetisa   os nossos sonhos mais doces; sonhámos com
                                   ou uma sacerdotisa sibila, e nenhum de nós se   eles  também,  e  sorrimos  ao  ver,  nesses  tão
                                   pode  queixar  de  assédio  sexual  por  parte  do   carregados colegas, existir um brilho de vida,
                                   deus Apolo; em suma – o que vemos nós em   um amor à existência tão natural quanto o seu
                                   Cassandra?                               mundo  é  artificial.  Dá  esperança  a  qualquer
                                          Em primeiro lugar, apreciamos a luta   um.
                                   de  Cassandra,  e  admiramos  a  sua  força;  ela   Isso  leva-nos  a  outra  pergunta  que
                                   lutou pelo que era dela, contra o que lhe era   acabará por ser concebida; o porquê? porquê
                                   ditado  por  quem  se  lhe  impunha  como  uma   uma revista? porquê textos? porque nós? Tal-
                                   autoridade inquestionável. E, punida e ostraci-  vez não haja porquês para nós, que aqui esta-
                                   zada,  continuou  a  tentar,  no  seu  sofrimento,   mos, presos no âmbar do tempo. Mas tentarei
                                   fazer  tudo  quanto  conseguia  pelos  seus.  Era   responder.  A  existência  desta  revista  deve-se
                                   livre e determinada; um verdadeiro modelo.   essencialmente  a  duas  entidades  ou,  melhor
                                          Mas  também  conseguimos  rever  a   dito,  à  maneira  como  essas  duas  entidades
                                   maldição  de  Cassandra  como  ainda  presente   interagiram.  E  que  entidades  são  essas?  A
                                   em  nós  próprios.  Durante  os  últimos  meses,   primeira é o Professor Paulo Moura, que, para
                                   tivemos  a  oportunidade  de  ler  estes  breves   além de Professor de Português, serve também
                                   extratos de pensamento impresso dos nossos   como  Professor  Bibliotecário  na  ESMAVC,
                                   colegas; é, por vezes, difícil de imaginar uma   supervisionando a velha e honrada instituição
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