Page 9 - Cassandra
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                           semáforo brilha num vermelho que me ofusca. Ainda assim, é bom ver cor. Enquanto atra-
                    vessava solenemente a passadeira, debati se aquele vermelho se aproximava mais do magenta ou
                    do carmesim.

                          Eis a primeira grande ofensa, a primeira grande falha no meu conhecimento que se tinha
                    manifestado, agora que os meus horizontes se tinham expandido; na minha extensa educação,
                    fora ensinado a distinguir magenta do amarelo e essas do azul; verde, laranja e violeta como sen-
                    do as misturas de duas dessas cores primárias e, claro, o velho branco e preto, insólitos, além-
                    classificação. Mas nada mais. E que é feito do escarlate? Não era útil, ao que parece. De que serve
                    saber distinguir os tipos de vermelho, o azul celeste do marítimo? Nada.

                          Talvez seja esse o problema. Talvez seja essa a essência da grande falha do Ocidente, aquilo
                    que nos condena a cair. Meditei em tudo o que me fora ensinado pelo sistema, enquanto rodava a
                    chave e subia metodicamente as escadas. Aprendi Física, não para um dia subir aos céus e navegar
                    nas estrelas, mas para construir escadas como as que subo agora, edifícios como aqueles que habi-
                    to. Biologia? Isso serve para receitar analgésicos aos doridos e estupefacientes aos iluminados, não
                    para admirar os leopardos na natureza. Ensinaram-me poesia, é verdade, mas apenas porque as

                    frases poéticas fluem bem e são bem construídas, e é mais fácil ler um relatório de alguém que
                    sabe colocar fluência na banalidade; aumenta o rendimento do trabalhador.
                          As  escadas  acabaram  e, enquanto  abro  uma última  fechadura,  já  me  estou  a  perguntar
                    acerca de outros templos da minha vida que descobri serem meras fachadas.

                          Amamos? Não… Não amamos. Mas partilhamos a cama, porque é útil ao sistema que nos
                    reproduzamos, que façamos mais como nós; e a nós é-nos útil a instituição de fuga aos impostos
                    apelidada de casamento. Além disso, um operário que partilhe a cama com quem seja ameno dor-
                    me mais horas e como quem dorme mais horas é mais produtivo; é-nos permitido o divórcio, pa-
                    ra encontrar outra pessoa que nos seja mais tolerável.

                          Deixo cair ao chão a fonte do esclarecimento, um livro de um excêntrico irlandês acerca de
                    um rapaz britânico, Dorian Grey. Sorrio. Dorian Grey amara. Dorian Grey sabia as cores, e recitá-
                    las com poesia autêntica. Dorian Grey era belo, já ninguém é belo. Somos todos pálidos, mecâni-
                    cos.

                          Wilde escrevera por sentir, não para receber uma nota ou ser publicado numa revista. E
                    era por isso que Dorian Grey era belo, e não pálido e mecânico. Trazia conhecimento verdadeiro,
                    não factos industrializados. Mas para mim não havia esperança.

                          Quando descobri isso, vieram-me lágrimas aos olhos; esperei chorar, mas apercebi-me de
                    que não sabia como. Demorei um pouco a aprender como o fazer, nunca mo fora ensinado.

                          Agora estou de pé, no parapeito do prédio, pronto a saltar, mas descubro que não o sei fa-
                    zer. Saltar não é útil, pelo que não me ensinaram a fazê-lo.










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