Page 13 - Cassandra
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Q                                                          Peregrinei  mais  para  encontrar  uma nova cidade;
              uando saí de casa dos meus pais pela primeira vez,
         não conhecia o mundo. Tinha ouvido histórias; em muitas   nesta, segui uma multidão que ia a ouvir um homem ves-
         acreditava, outras ignorava, tomando-as como mitos, su-  tido de ouro a apelar à humildade; a multidão ajoelhava-
         perstições, e delas troçava.                          se em louvor a um homem torturado; explicaram-me que
              Quando saí, não houve alarido; a minha mãe abra-  o Crucificado era o seu Deus, e que o seu Deus era o seu
         çou-me; o meu pai perguntou se eu tinha tudo o que pre-  tudo. Achei estranho.

         cisava.  Respondi que  sim.  Diz-se  que é  natural  os  filhos      Mais tarde, percebi que todos os homens têm um
         saírem de casa dos pais — entre os que vivem junto a um   Deus. Para uns é o Crucificado ou alguma variação. Outros
         rio chamado Mississippi, as crianças limitam-se a ir numa   louvam a Lei ou a Democracia; outros veem-se a si pró-
         jangada rio abaixo até ao seu destino. Jurei ir ver esse rio.   prios como deuses.
         Nunca o consegui encontrar. Achei estranho.                 Voltei  para  a  casa  paterna.  Aquele  mundo  estava
              A primeira cidade onde eu cheguei tinha sido cons-  visto. Não fizeram grande alarido. Agora, por vezes, per-
         truída por um herói mítico de uma epopeia; mais tarde,   guntam-me se quero pertencer a esse mundo.
         fora totalmente destruída por um terramoto devastador;      A minha resposta? Não, obrigado.
         era sabido que haveria um novo sismo, mas ainda assim
         reconstruíram a cidade por cima dos escombros. Pergun-
         tei a um habitante porquê. Ele não me soube responder;
         falou-me  de  reis  mortos  e perdidos  no nevoeiro. Depois
         desculpou-se; tinha de ir ver um jogo na televisão. Achei
         estranho.
              Apercebi-me de que não gostava daquela cidade ou
         dos seus habitantes. Pintavam de cor-de-rosa o passado e
         para o presente tinham os seus próprios ópios. Decidi con-
         tinuar; pelo que ouvira dizer, o mundo era maior do que
         isto.
              Andei  muito até voltar  a  parar.  Era  outra cidade;
         esta tinha uma torre metálica que se erguia desafiadora, e
         quando  perguntei  o  que  fazer  na  cidade,  levaram-me  a
         edifícios antigos para ver pedaços de madeira pintada —
         arte.  Vi  uma senhora  a  sorrir-me  esfingicamente.  Sorri-

         lhe de volta. Mais tarde, arranjei tela e tinta; tentei a mi-
         nha própria arte. Quando a mostrei, desprezaram-na. Dis-
         seram-me que era noviça; levaram-me aos seus mestres;
         vi que eram corruptos, que viviam para o dinheiro apenas.
         Nesse mesmo dia abandonei a cidade dos artistas; o seu
         tipo  era  uma  sombra  difusa  do  que  antes  teriam  sido.
         Achei estranho.
              A terceira cidade a que cheguei era, em termos de
         vícios, pelo menos honesta. Lá, levaram-me a um bairro
         onde  todos  os  néones  brilhavam  pela  noite  adentro  de
         vermelho, nas montras dançavam manequins vivos, e nas
         suas casas de café, o fumo era espesso e sonhavam com
         arco-íris. Achei estranho.
              Apreciei  a  honestidade,  mas  não  fiquei  lá  muito
         tempo;  não  me  odiava  o  suficiente  para  ter  de  fazer  da
         hedónica euforia narcótica uma vivência.


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