Page 202 - Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos - 11.11.2020 com mais imagens redefinidas para PDF-1_Neat
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Astu Ninan ficara observando o velho se afastar com andar trôpego, sem ao
menos se lembrar de lhe perguntar seu nome, ou a localização da propriedade
comprada, ou como iria saber, quando e como encontrá-lo, para assisti-lo na
sua morte. Pensara que talvez, um dia, pudesse usar a ideia daquele encontro
e do diálogo inacreditável em algum romance e, tão logo a figura encurvada
do velho desaparecera da sua vista, não pensara mais sobre ele.
Terminara seu drinque mergulhado em mil outros devaneios, já esquecido por
completo do incidente.
Dias depois os gritos aflitos de Consuelo, a cozinheira do casarão, o obrigaram
a recordar cada detalhe daquele encontro surreal, pois a assustada mulher
benzia-se diante de uma feia mancha de um líquido vermelho, que mais tarde
se verificou ser mesmo sangue, a se alargar na vidraça de um dos janelões da
cozinha.
Entre as repetições de “Madre de Dios,” e as lágrimas da cozinheira, Cesar
correu para testemunhar a aparição inexplicável que foi crescendo até
dominar a vista inteira do jardim, transformando-a num borrão difícil de
decifrar.
Ficaram os dois, imóveis, observando o sangue a se esparramar e viram
quando uma mão humana limpou um espaço do vidro para deixar aparecer
um rosto de velho, quase transparente na sua lividez espectral e com um olhar
tão solitário e triste que causava pena, muito além do medo.
Cesar reconheceu o homem de quem comprara uma propriedade de família
por pouco mais do que alguns trocados e a quem havia prometido um dos mais
misericordiosos e importantes serviços que um ser humano pode prestar a
outro e dominou o próprio susto. Saiu correndo pela porta da cozinha e se viu
diante do fantasma que ia aos poucos se desintegrando, mas que teve tempo
de apontar uma direção com braço trêmulo e gritar um nome, Santhiago Ruiz
Paz, antes de se misturar e se desvanecer na claridade estridente da manhã de
sol de outono.