Page 414 - Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos - 13.11.2020 com mais imagens redefinidas para PDF-7
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E havia brisa, havia o ir e vir das ondas batendo nas pedras lá embaixo e
                      entrando pela areia da praia, o tamborilar de conchas se enterrando no fundo
                      arenoso do mar, o nascer dos milhões de animaizinhos rompendo as cascas dos
                      ovos  que  os  formaram,  o  estourar  das  bolhas  de  ar  em  meio  as  agitadas
                      nadadeiras dos peixes em seus movimentos graciosos, o vento envolvendo as
                      folhas das árvores e o desabrochar das flores, o amadurecer dos frutos, o lançar
                      das sementes e os voos dos pássaros e seus trinados e arrulhos e os milhões de
                      outros  barulhinhos  impossíveis  aos  ouvidos  humanos  normais,  mas  que  o
                      longo e disciplinado treinamento de trinta anos o havia capacitado ouvir.
                      Incorporar, reverberar e vibrar na frequência exata da música dos anjos.


                      E bem lá ao fundo, muito distante, o contínuo cantarolar em vozes humanas
                      entremeado de risos das mulheres e o tom grave do enfermeiro, sussurrando
                      para  não  perturbá-lo  no  seu  quase  sono.  Em  definitivo  a  harmonia  e  a
                      frequência perfeitas formadas pela totalidade dos pequenos sons da vida em
                      paz.

                      E,  então,  um  barulhinho  metálico  destoando,  inaudível,  senão  naquele
                      milionésimo de segundo em que silenciou o alvoroço da vida para Cesar ser
                      acordado da sua letargia e ver a chegada da morte e ser assombrado pelo
                      fantasma de si mesmo há trinta anos, quando ele soube que ficaria louco.

                      Compreendeu que ia morrer antes mesmo de chegar ao fim da sua corrida
                      alucinada em direção ao abismo e ser lançado no ar. Solto, flutuando sem
                      peso, sem medo, finalmente com asas enormes para um voo mágico e com o
                      Condor materializado em madrepérola voando ao seu lado. Ouviu mais uma
                      vez a voz como um grasnar profundo lhe perguntando qual seria sua última
                      palavra nesse mundo e fiel a sua alma se ouviu dizer, “__Victor.”


                      Pensou que finalmente acompanhava a morte e que ela era uma velha amiga
                      e que havia no ar a música certa para a renovação da vida e para salvar
                      mundos. Plenamente consciente de quem era, das suas asas enormes e de seus
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