Page 58 - As Viagens de Gulliver
P. 58
Os Blefuscudianos, que não podiam adivinhar qual fosse o meu propósito,
ficaram igualmente surpreendidos e confusos: não me tinham visto cortar as
amarras e julgaram que a minha idéia era deixá-los flutuar ao sabor do vento e
da maré, fazendo-os se entrechocarem; quando, porém, viram que eu rebocava
toda a esquadra, soltaram gritos de raiva e de desespero.
Tendo caminhado por algum tempo e achando-me fora do alcance das
suas flechas, parei um pouco para tirar todas aquelas que se me tinham cravado
no rosto e nas mãos; depois, conduzindo a minha presa, tratei de me dirigir ao
porto imperial de Lilipute.
O imperador, com toda a sua corte, estava na praia, aguardando o êxito
da minha empresa. Viam ao longe uma armada que se acercava; como, porém,
a água me dava pelo pescoço, não notaram que era eu quem a conduzia até eles.
O imperador julgava que eu tinha perecido e que a esquadra inimiga se
aproximava para operar o desembarque; os seus temores, porém, em breve
foram dissipados, porque, tendo encontrado pé, viu-me à frente de todas as naus
e ouvira-me gritar com toda a força dos meus pulmões: Viva o muito poderoso
imperador de Lilipute. Assim que cheguei à terra, este soberano elogiou-me
infinitamente e, logo em seguida, me fez nardac, que é o mais honroso título
honorífico existente entre eles.
Sua Majestade pediu-me que lhe satisfizesse o desejo de se assenhorear
dos outros navios inimigos e de os conduzir aos seus portos. A ambição deste
príncipe ficava satisfeita com a posse de todo o império de Blefuscu, para o
reduzir a província do seu império e fazê-la governar por um vice-rei; mandou
matar todos os exilados partidários da extremidade mais grossa e constranger os
seus povos a quebrarem os ovos pela extremidade mais delgada, o que o faria
chegar à monarquia universal; tratei de dissuadi-lo dessa idéia, baseando-me em
razões políticas e justiceiras e neguei-me energicamente a tornar-me
instrumento para oprimir a liberdade de um povo livre, nobre e corajoso. Quando
foi apresentado este assunto ao conselho, a parte mais sensata apoiou o meu
parecer.
Esta declaração franca e desassombrada era tão oposta aos projetos e à
política de Sua Majestade imperial, que era difícil obter perdão para mim;
falaram a este respeito no conselho de uma forma muito artificiosa, e os meus
inimigos secretos valeram-se disso para me perder. É bem certo que os mais
importantes serviços prestados aos soberanos são depressa esquecidos, quando
seguidos de uma recusa em os auxiliar cegamente em suas paixões!