Page 107 - Fernando Pessoa
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por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os va-
les. O sol que doura os pincaros, dourá-los-á para ele mais
[que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas
será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o es-
quece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso
consolar com a vida. E o simbolo funde-se-me com a reali-
dade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas bai-
xas que vão dar ao Tejo — vejo os altos claros da cidade es-
plender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que
já nem está no poente.
Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida!
Na grande praça ao centro da cidade, a água sobriamente
multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças, abre-se em
riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem-se desa-
tentamente, e construo em mim essa imagem áquea [sic]
que, melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria
chuva, se ajusta a este incerto movimentos.
Ao escrever esta última frase, que para mim exatamente
diz o que define, pensei que seria útil pôr no fim do meu
livro, quando o publicar, abaixo das "Errata" umas "Não-
Errata", e dizer: a frase "a este incerto movimentos", na
página tal, é assim mesmo, com as vozes adjetivas no singu-
lar e o substantivo no plural. Mas que tem isto com aquilo
em que estava pensando? Nada, e por isso me deixo pensá-lo.
À roda dos meios da praça, como caixas de fósforos mó-
veis, grandes e amarelas, em que uma criança espetasse um
fósforo queimado inclinado, para fazer de mau mastro, os
carros elétricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a fer-
ro alto. À roda da estátua central as pombas são migalhas