Page 105 - Fernando Pessoa
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está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro
de texto intersperso [sic] de imagens rápidas, de que vou
formando indolentemente uma idéia que nunca se completa.
Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua
sem ter visto tudo. Assim tiro do livro que se me folheia na
alma uma história vaga por contar, memórias de um outro
vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares,
com aléias de parques no meio, e figuras de seda várias, a
passar, a passar.
Indiscrimino a tédio e outro. Sigo, simultaneamente,
pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada, e os caminhos são
verdadeiramente percorridos. Emigro e repouso, como se
estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
Súbito, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos pro-
longamentos duplos da rua longa e curva. Como um baque a
minha tristeza aumenta. É que o livro acabou. Há só, na vis-
cosidade aérea da rua abstrata, um fio externo de sentimento,
como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a cons-
ciência da alma.
Outra vida, da cidade que anoitece. Outra alma a de
quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico, irrealmente sen-
tiente. Sou como uma história que alguém houvesse con-
tado, e, de tão bem contada, andasse carnal mas não muito
neste mundo romance, no princípio de um capítulo: "A essa
hora um homem podia ser visto seguir lentamente pela rua
de..."
Que tenho eu com a vida?