Page 100 - Fernando Pessoa
P. 100

LIVRO  DO  DESASSOSSEGO             141
            o rio, para dizer que me dói a vida no olfato e na consciência,
            para não saber dizer, como na frase simples e  ampla do  Livro
            de  Jó,''Minha alma está cansada de minha vida!''.





                Depois  que  o  calor  cessou,  e  o primeiro  leve  da  chuva
            cresceu para ouvir-se,  ficou no ar uma tranqüilidade que o  ar
            do calor não tinha,  uma nova paz em que a  água punha uma
            brisa  sua.  Tão  clara  era  a  alegria  desta  chuva  branda,  sem
            tempestade  nem  escuridão,  que  aqueles  mesmos,  que  eram
            quase todos,  que  não  tinham  guarda-chuva  ou  roupa  de  de-
            fesa, estavam  rindo  a  falar  no  seu  passo  rápido  pela  rua  lus-
            trosa.


                Num  intervalo de  indolência cheguei  à janela aberta  do
            escritório — o calor a fizera abrir, a chuva não a fizera fechar
            — e contemplei com  a atenção intensa e indiferente, que é o
            meu  modo,  aquilo  mesmo  que  acabo  de  descrever  com  jus-
            teza antes de o ter visto.  Sim, lá ia a alegria  aos  dois banais,
            falando a sorrir  pela  chuva  miúda,  com  passos  mais  rápidos
            que apressados, na claridade limpa do dia que se velara.


                Mas, de repente,  da  surpresa  de  uma  esquina  que  já  lá
            estava,  rodou  para  a  minha  vista  um  homem  velho  e  mes-
            quinho,  pobre  e  não  humilde,  que  seguia  impaciente  sob  a
            chuva  que  havia  abrandado.  Esse,  que  por  certo  não  tinha
            fito,  tinha  ao  menos  impaciência.  Olheio-o  com  a  atenção,
            não já desatenta,  que se dá às coisas,  mas definidora,  que se
            dá  aos  símbolos.  Era  o  símbolo  de ninguém;  por  isso  tinha
           pressa.  Era o símbolo de  quem  nada  fora;  por isso sofria.  Era
            parte,  não  dos  que  sentem  a  sorrir  a  alegria  incômoda  da
            chuva,  mas da mesma chuva  — um inconsciente,  tanto  que
           sentia a realidade.
   95   96   97   98   99   100   101   102   103   104   105