Page 103 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
pensamentos e na perda súbita de luz da nuvem alta — o se-
gredo, a verdade, a ventura talvez, que houvesse em não sei
quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que
falta, é que me resta, e sobre os telhados altos, diversamente,
a luz deixa escorregar as suas mãos de queda, e sai à vista,
na unidade dos telhados, a sombra íntima de tudo.
Vago pingo trêmulo, clareia pequena ao longe a pri-
meira estrela.
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, va-
garoso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo,
nítido o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul
esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo,
sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada,
uma névoa acastanhada de cor de rosa morto. Há uma gran-
de paz que não tenho dispersa friamente no ar outonal abs-
trato. Sofro de a não ter o prazer vago de supor que ela exis-
te. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu ape-
nas, céu de todas as cores que desmaiam — azul branco,
verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, va-
gos tons remotos de cores de nuvens que o não são, amare-
ladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma
visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um
intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonali-
dades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.
Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente
por tudo, invade-me como um ópio do ar frio. Há em mim
um êxtase de ver, íntimo e postiço.
Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez
mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azu-
la de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não con-
segue nunca. Cala alto a paisagem do céu.