Page 97 - Fernando Pessoa
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De aqui, da cama, se abro os olhos que têm o sono que
não tenho, é um ar de neve tornada cor onde bóiam filamen-
tos de madrepérola morna. E, se o sinto com o que sinto, é
um tédio tornado sombra branca, escurecendo como se olhos
se fechassem sobre essa indistinta brancura.
Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar desta
cidade clara, a névoa envolve, num manto leve, que o sol foi
crescentamente dourando, as casas múltiplas, os espaços
abolidos, os acidentes da terra e das construções. Chegada,
porém, a hora alta antes do meio-dia, — começou a desfiar-se
a bruma branda, e, em hálitos de sombras de véus, a cessar
imponderavelmente. Pelas dez horas da manhã só um tênue
mau-azular do céu revelava que a névoa fora.
As feições da cidade renasceram do escorregar da más-
cara do velamento. Como se uma janela se abrisse, o dia já
raiado raiou. Houve uma leve mudança nos ruídos de tudo.
Apareceram também. Um tom azul insinuou-se até nas pe-
dras das ruas e nas auras impessoais dos transeuntes. O sol
era quente, mas ainda umidamente quente. Coava-o invisi-
velmente a névoa que já não existia.
O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro
modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do
que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais,
há muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar,
primeiro de luz obscura, depois de luz úmida, mais tarde de
ouro luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas
das mãos das folhas, o sol multiplica os seus possíveis efeitos
nas janelas, nos muros, nos telhados, — [...] — quando ma-
nhã [...] a tantas realidades diversas. Uma aurora no campo
faz-me bem; uma aurora na cidade bem e mal, e por isso me
faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me
traz tem, como todas as esperanças, aquele travo longínquo e