Page 92 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

           (não sendo consciente) era a vida.  Via a  manhã e tinha  ale-
           gria;  hoje  vejo  a  manhã,  e  tenho  alegria,  e  fico  triste.  A
          criança  ficou  mas  emudeceu.  Vejo  como  via,  mas  por  trás
          dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol
          e o  verde das árvores é velho e as  flores murcham  antes  de
          aparecidas.  Sim,  outrora  eu  era  daqui;  hoje,  a  cada  paisa-
          gem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro,  hóspede
          e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço,
          velho de mim.


              Já vi tudo,  ainda o que nunca vi,  nem o  que nunca ve-
          rei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras,
          e a angústia do que terei que  ver de novo é uma monotonia
          antecipada para mim.


              E debruçado ao parapeito,  gozando do dia,  sobre o  vo-
          lume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a
          alma —  a vontade  íntima de morrer, de acabar,  de não  ver
          mais luz sobre cidade alguma, de não pensar,  de  não sentir,
          de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e
          dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande
          leito, o esforço involuntário de ser.




              Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobre-
          tudo nos meio-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa,
          o campo,  como  um  vento,  nos  invade.  E  aqui  mesmo,  na
          Rua dos Douradores, temos o bom sono.

              Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas
          carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes  transeun-
          tes lentos,  de  aldeia  transferida!  Eu  mesmo,  olhando-os  da
          janela  do  escritório,  onde  estou  só,  me  transmuto:  estou
          numa  vila  quieta  da  província,  estagno  numa  aldeia  incóg-
          nita, e porque me sinto outro sou feliz.
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